Capítulo 1

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Chatsworth, 04 de Outubro de 2017

Oi Picinho,

Eu ia me desculpar por começar a escrever assim, mas não vou, você é o meu Picinho e vai ser assim pra sempre. Goste ou não. Atura ou Surta. (não é assim que você diz).

Eu não tenho ideia se algum dia você terá a oportunidade de ler essa carta, de toda forma estou escrevendo pra mim e, não entenda errado, o que é muito normal entre nós, mas é que eu preciso colocar pra fora o que queima dentro de mim. Tu sempre dizes que não te ouço e, bem, por isso estou escrevendo. Sabe, tem uma menina que eu conheço, linda, cabelos e olhos escuros, um nariz perfeito e uma manchinha linda na têmpora esquerda, essa menina um dia me contou que quando sua mãezinha se foi lhe aconselharam a escrever o que sentia, lhe disseram que guardar a dor pra si não lhe faria bem, eu to seguindo o conselho que ela recebeu, eu to seguindo o que tu me contou, por que eu sempre te ouvi.

Eu quero te contar duas coisas em especial hoje, talvez três, tu vai me ouvir? Só um pouquinho? (Acredita que fiz com a mão o gesto e imaginei seus olhos escuros virando em sinal de impaciência, foi tão real que tentei lhe tocar o rosto, que bobo eu sou, não?).

Tu sabes que eu sempre sonhei em voltar pra cá, em trabalhar nos campos de refugiados, me filiar aos MSF. O que tu não sabes é que, exatamente uma semana depois de nossa separação eu recebi, finalmente, o chamado para o processo seletivo e, então aprovado no processo, em menos de uma semana o chamado para a África, eu sabia da possibilidade de ir para outros lugares, mas, era a África. Eu acredito no Cosmo e li como um sinal. Eu acreditei, ou melhor, acredito realmente que a única forma de conseguirmos superar esse nosso sentimento CONTURBADO é à distância, mas não podia ser pouco distância dessa vez, eu sou fraco por ti, tu também é por mim, um de nós ia acabar aparecendo na casa do outro e começaríamos tudo de novo. Eu balancei na hora de embarcar, assumo. Como disse pra ti, uma razão, uma pequena razão, um simples FICA e eu teria ficado e corrido para o seus braços sedento de saudade. Quando sua resposta chegou meu coração acelerou de ansiedade, de alegria, de amor, eu tinha certeza que tu me pedias que ficasse. Mas, quando eu li sua resposta meu coração parou, eu parei, de dor, de mágoa, de raiva. "Boa Viagem. D'us te acompanhe.", essa era a primeira coisa que precisava de te contar, eu te odiei, odiei durante as doze horas de viagem e odiei durante esses sete primeiros dias aqui. Te odiei por ter me feito chorar durante todo o voo, por não ter me deixado dormir durante sete noites, por eu não ter vontade de me aproximar de outras pessoas para conversar, por não ter vontade de comer, por não ter vontade de nada, com uma única exceção, que é a segunda coisa que quero te contar.

Malik, e, caso um dia tu leias essa carta, melhor deixar explicado, né? Malik é um guri de cerca de cinco anos, eu imagino, pois acabou de trocar os dois primeiros dentes de leite. Ele não fala muito, alias, não fala nada, no dia em que cheguei o vi sentado longe das demais crianças, muito sério, algumas crianças tentavam puxá-lo para brincar e ele continuava no mesmo lugar, na hora da refeição afastou-se dos demais e sentou-se sozinho. Eu também sentei sozinho e notei que ele também me observava, mas ele sorriu pra mim, seus dentes muito brancos em contraste com sua pele muito negra e dois olhos de um azul tão profundo que, se fosse uma foto, eu diria que é montagem. Eu perguntei sobre ele ao nosso coordenador geral, sobre sua história. Ele me contou que Malik é o filho mais novo de uma família de oito irmãos, todos homens. Contou que seu pai e os irmãos foram todos mortos na guerrilha, sua mãe foi abusada na frente dele e depois tirou a própria vida por vergonha. Que ele foi trazido ao acampamento pelos guerrilheiros a cerca de um ano, disse que os guerrilheiros pediram que cuidassem bem dele e quando perguntados por que, explicaram que não podiam mata-lo, que Malik tinha os olhos do céu, os olhos do Senhor. Contou-me também que ele nunca se misturou com as outras crianças, que é educado, faz tudo que se pede, tem uma postura altiva apesar de sua idade, que não fala e que nunca o viu sorrir. Mas ele sorriu pra mim, com seus olhos de céu e eu sabia que havia uma razão especial para ele sorrir pra mim e precisava descobrir qual era essa razão, talvez mais um sinal. Imagino que, a essa altura, se tu estivesses lendo aqui já estaria se rindo toda de mim, estaria me chamando de Cavalheiro da Armadura Brilhante e implicando com, como tu falas, mania de querer proteger. Eu precisava tentar me aproximar, foi mais forte que eu, foi incontrolável. No almoço do dia seguinte eu me sentei ao seu lado e "almoçamos juntos", calados, isolados, longe do refeitório, debaixo de sol, eu com o meu boné azul, ele com o boné que, certamente, um dia foi branco. Repetimos o ritual no jantar daquele dia e no almoço e no jantar do dia seguinte, no meu terceiro dia, quando sai do vestiário o encontrei sentado me aguardando, tornou-se meu companheiro, quando eu entro em cirurgia, ele me espera, quando ele está em aula e eu livre, eu o espero, ele me mostra o campo, eu lhe mostro meus livros de medicina, eu falo com ele, ele só me olha e faz gestos. Ontem, quando ele me acompanhou até o alojamento, estiquei minha mão para ele, como um cumprimento de boa noite, ele sorriu com os dois bracinhos para trás do corpo e só balançou a cabeça. Mas hoje de manhã, hoje foi diferente.

Essa é a terceira coisa que quero te contar. Eu prometi no momento que cheguei aqui, que pisei em solo Africano, que não choraria mais, pelo que fosse, eu não derramaria nem mais uma lágrima, nem por nós, nem por ti, nem por mim, nem por ninguém. Eu chorei às doze horas de voo, então acho que foi o bastante, né? Mas sabe, eu quebrei a promessa Picinho, hoje eu não consegui cumprir, hoje eu desejei não ter cumprido outra também, sabe qual? Tu sabes, eu sei que sabes. Hoje, depois da sétima noite sem dormir, eu não te odiei mais, não te odiei nem um pouquinho. Agora são nove horas da noite e o acampamento já está quase todo em silêncio, eu to sentando ainda no refeitório, Malik esteve comigo até alguns segundos antes de eu começar a escrever, ele queria saber se eu ia escrever para a minha mãe e eu neguei e mostrei a sua foto, sabe que ele fez, tu não imagina nenê, o rapazinho pegou meu celular e o encheu de beijos, o abraçou e fez carinha de apaixonado, eu gargalhei alto, como gargalhava de você, com você, quando tu caía nas minhas piadas idiotas ou quando tu pegava ar por alguma implicância minha, gargalhei como a muito não fazia. Me perdi de novo, né? Sempre acontece quando penso em você. Eu tava te contando que hoje eu não consegui cumprir minha promessa de nunca mais chorar, que hoje eu não te odiei mais. Hoje eu me odiei, por não ter sido seu alicerce, por não ter conseguido reverter nossa briga, por ser cabeça dura, orgulhoso e me jogar no voo pra cá quando tudo que eu queria era correr pra você, mas eu só entendi isso hoje. Eu caminhava para o vestiário ainda chorando, como estava escuro os outros provavelmente não notariam, mas não foi bem o que aconteceu. No meio do meu desespero de dor estava Malik, ele me abraçou, coisa que não tinha feito antes, ele secou minhas lágrimas, e, eu chorei abraçado ao meu pequeno amigo, ajoelhado no caminho entre o alojamento e os vestiários, mas, o mais surpreendente de tudo, e sei que tu acreditas também em sinais, é que tenho certeza que vim pra cá pra estar com ele, para ajudar a curar seu coração enquanto também curo o meu. Sabe por que tenho certeza disso, eu sinto seu cheiro no pequeno Malik, ele cheira a biscoito torrado, como você. Ele é o meu sinal de que somos e sempre seremos um do outro. Agora eu sei que não vim pra cá para esquecê-la, vim pra cá para me curar das dores da minha alma e te dar o espaço necessário para tu se curar das suas. Vim para cá para amadurecermos separados, para apreender a amar com amor. A distância não importa mais, eu posso estar na lua por mil anos, mas eu jamais vou esquecê-la, eu jamais vou estar longe.

Te encontro em meus sonhos.

Te cuida pra nós.

Queria estar aí com você,

Marrrcos.

Enquanto não volto pra vocêOnde histórias criam vida. Descubra agora