•2.Vela Azul

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2017

Atraso deveria ser meu nome do meio, fazia as coisas muito lentamente e por isso sempre errava a hora. Havia marcado com Gullar às três horas da madrugada em ponto no cemitério, eu levaria as velas e faria o ritual. Só queria uma companhia. Não queria entrar num cemitério as três da manhã sozinha.

Mesmo que a companhia de um fantasma não fosse grande coisa. Ainda era uma companhia. Além disso era a única que eu tinha, a única louca o suficiente - assim como eu - para entrar num cemitério de madrugada.

Eu dava meu máximo na bicicleta de alumínio que herdei do meu avô, mas mesmo assim eu estava atrasada. Sim, seis minutos pra mim é quase o fim do mundo. Odeio deixar as pessoas esperando, porque eu tenho ódio esperar os outros. Eu seguia piamente aquele ditado " não faça para os outros o que não queres para ti. "

Olhei de relance apara o meu relógio, já haviam se passado mais quatro minutos e agora eram três e dez da madrugada. Senti o medo me percorrer. Fiquei receosa, achava que Gullar não me esperaria. Pedalei mais, quase caí quando virei a esquina da comprida rua do cemitério. Faltavam menos de duzentos metros. Sentia-me esgotada, mas consegui resistir, minha vontade de tentar me incentivou.

Pareceu demorar uma eternidade. O suor no rosto incomodava-me muito, principalmente no buço. Demorou um bom tempo para avistar os portões fechados do cemitério, mas depois de alguns poucos minutos eu consegui.

Lá estava Gullar, sentado num dos bancos, braços cruzados, cara amarrada. Provavelmente estava de mal com o mundo ou com outro espectro. As ruas não estavam totalmente vazias, haviam pessoas ou fantasmas, não sabia distinguir, sob a fraca luz do poste, quais eram materiais e quais eram imateriais. Para mim eram todos iguais.

Quando avistou-me de longe, com meu visual desleixado, jaqueta jeans, calça de viscose e uma blusa azul assim como a calça, seu rosto relaxou um pouco. O que incitou-me a chegar mais perto e arriscar-me a dizer algo.

- Oi. - foi a única coisa que consegui formular.

Ele relaxou os braços e com um pequeno impulso das mãos contra o banco, se levantou e chegou mais perto. Estava sério, apesar de não parecer bravo, nem irritado, não estava mais com aquela cara amarrada.

- Você está atrasada.- foi a primeira coisa que ele me disse.

Não houve um, oi, tudo bem ? Como foi o dia ? A família vai bem? Ele simplesmente jogou toda sua frustração com o meu atraso, sem medir as palavras, sem nem antes cumprimentar-me. Jogou-me todo o seu descontentamento, seco, e tudo que eu fiz foi engolir toda a saliva que estava na minha boca.

- Desculpe - foi tudo o que eu fui capaz de dizer-lhe.

Olhei para baixo. Essa seria a hora perfeita para ele dizer que estava tudo bem, mas ele não disse. Apenas ignorou tudo o que eu proferi e fingiu que minhas desculpas não existiam. Então sorriu, assim do nada, e pude sentir seu espectro frio atravessar meu ombro, numa tentativa falha e ridícula de carinho. Ele sabia, a mão iria atravessar, mas mesmo assim ignorou esse fato e eu senti um arrepio gelado quando sua mão atravessou meu braço.

- Como você pretende fazer? - ele perguntou, mas eu me calei. - como pretende trazê-lo de volta ? - ele perguntou com um tom desesperado.- Você sabe como se faz. Disso eu sei.

Eu realmente sabia, mas não tinha tanta certeza se queria realmente ver Charlie. A culpa ia me corroer e eu não sei se teria coragem de vê-lo novamente. Não tinha psicológico para olhar para ele, sem poder tocar, em forma de espectro. Não sei se gostaria de vê-lo assim. Memórias minhas com ele passavam em minha mente como vultos, eu estava perdida, quase zonza, bêbada, chapada de memórias.

Penhascos do drama [Completo]Onde histórias criam vida. Descubra agora