24. Morte trágica

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2016

Ele não deixou seu heroísmo de lado nem mesmo no último instante de vida. Naquele estágio, aos dezessete anos, Charlie era alto e forte, os ombros largos, os cachinhos caindo na frente do rosto e os olhos castanhos quentes como o fogo de uma lareira. Ele apareceu por entre as árvores, a expressão séria, os olhos ardentes. Eu respirei fundo. Tudo estava dando errado. Eu não era capaz de acreditar na minha falta de sorte. Eu me aproximei da beira, olhei para trás. O vazio me esperava.

- Lara. - Charlie chamou com cuidado. Eu abri os braços. - por favor. Eu te amo. Não faça uma coisa dessas comigo.

- Tarde de mais.

Dei um passo para trás. Havia apenas um passo entre mim e a morte. O abismo parecia me atrair, me puxar. Charlie me agarrou, me puxou para longe do precipício. Ele segurava meu antebraço com força enquanto gritava. Ele estava desesperado.

- LARA ESQUECE, PARA COM ISSO VOCÊ NÃO VAI SE MATAR. - ele gritou, a voz feroz, amedrontadora, e eu me encolhi. - VOCÊ NÃO PENSA NOS OUTROS ? NÃO VÊ O QUÃO EGOÍSTA ESTÁ SENDO? VOCÊ ACHA QUE AS PESSOAS VÃO FICAR BEM COM A SUA MORTE ? VOCÊ NÃO PENSOU NA VÊNUS ?

Meu braço doía devido ao aperto. Ele era forte e naquele momento, de pura angústia, estava me machucando. Eu caí no chão, fraca, dolorida. Tirei meu cardigã e senti o vento bater em meus braços nus. Eu queria que ele visse que tinha me machucado. E lá estava, as duas mãos vermelhas marcadas em toda volta dos meus antebraços. Aquilo ficaria roxo logo mais. Ele sabia o que aquilo significava. Ele estava sendo exatamente o que mais temia. O próprio pai. Ele me olhou, e depois encarou as próprias mãos.

Ele tinha machucado a pessoa que mais amava. Estava confundindo o amor com o ódio. Estava tornado um sentimento tão puro motivo para brutalidade.

O amor tinha várias faces. Ele podia ser puro e doce. Ele podia ser educado e gentil. Mas ele também podia ser egoísta e cruel. Ele podia ser bruto e feroz. Embora, isso não justifique nenhuma atitude cruel que o amor nos leva a tomar.

- Desculpa.

Eu apenas assenti. Cansada de mais para dizer qualquer coisa. Eu encarei o chão envergonhada. Minha presença tóxica tinha corrompido Charlie. Eu estava fazendo mal a ele. Em toda aquela minha trágica decisão eu tentei não pensar em Charlie ou em Vênus. Pensar neles me faria desistir e eu não queria desistir.

- Eu só quero morrer. - supliquei com a voz rouca. - Não me faça pensar em você ou na Vênus. Eu já desisti muitas vezes pensando em vocês e eu não posso mais desistir. - minha voz parecia estar sumindo, a cada segundo mais fraca. - Eu chego sempre a mesma maldita conclusão. Eu planejo e não tenho coragem e quando eu a consigo. VOCÊ APARECE. - não sabia de onde eu tinha tirado voz para gritar essa última frase. Eu me levantei. - Você vem aqui dizendo que EU SOU EGOÍSTA, QUE EU NÃO ESTOU PENSANDO EM VOCÊS. A verdade é que eu desisti inúmeras vezes por vocês. - eu estava ofegante, o peito subindo e descendo rapidamente a procura de ar.

Eu suspirei pesadamente olhando para o alto e sentido meus olhos encherem-se de lágrimas. Eu tinha dito tudo o que eu precisava. Sentia-me mais leve e relaxada. Eu não achava que a minha vida fosse importante. Ela não merecia todo esse cuidado. Eu amava Charlie, amava Vênus. Quando eu fiz menção de ir para o penhasco novamente ele segurou-me de novo. Apertou meus braços com força e aquilo doeu imensamente. Eu tentava desvencilhar-me de seus braços, mas era impossível. Foi a primeira vez que eu tive medo de Charlie. Ele parecia ter raiva e tudo aquilo estava sendo direcionado a mim.

— Charlie. — chamei-o com a voz rouca e fraca. — Tá me machucando.

Ele me soltou novamente num surto de consciência. Charlie abraçou-me e foi aí que eu senti o cheiro do álcool. Charlie estava bêbado. Ele fedia a cerveja barata, mas eu não podia reclamar. Talvez meu cheiro fosse ainda pior.

Ele ficava levemente agressivo quando bebia, não tanto quanto o pai, mas o suficiente para fazer alguns estragos, para me machucar. Ele pegou meu rosto puxando com força e  apertando. Seus olhos estavam cheios de desespero. Quando estava bêbado, Charlie não tinha noção da própria força.

— Por favor amor. — ele se desesperou havia lágrimas em seus olhos. — Lara, fica, só mais um pouco. Só mais um dia.

Ele me fez desistir naquele momento.  Suas mãos desceram novamente para os meus braços e ele me sacudiu.

— Por favor. — ele clamou

Eu não conseguia me desvencilhar de seus braços por mais que tentasse. Sentia meus antebraços doloridos e agora que tinha tirado meu cardigã meu queixo batia. Eu sentia muito frio. Eu o encarei com medo, fechei os olhos por alguns instantes, respirei fundo e voltei a encara-lo.

— Charlie. Por favor para. Você está me machucando. Olha o que você está fazendo. — disse levemente com a voz embargada. Meus olhos se encheram de lágrimas.

Eu comecei a chorar, meus pés se atrapalharam e eu caí no chão. Charlie me soltou, os olhos assustados,  deu alguns passos atrapalhados para trás na direção do precipício. Ele não tinha noção do que fazia quando estava bêbado, ele ficava absurdamente agressivo e eu tinha medo. O medo estava estampado nos meus olhos. Charlie parecia não acreditar no que as suas próprias mãos tinham feito. Meus braços estavam ficando roxos numa velocidade vertiginosa.

Tudo aconteceu muito rápido. Foi um desmoronamento, um acidente, mas também foi minha culpa, se eu não estivesse lá nada daquilo teria acontecido. Charlie despencou junto com um pouco de terra e pedras que caíram sob os seus pés. Eu o vi cair. Eu vi o solo se rachar e desmoronar sob os pés dele. Eu corri para a beira e o que eu vi jamais poderia ser desvisto.

O corpo de Charlie jazia, morto, lá embaixo. O crânio destroçado, o abdômen aberto, os braços e pernas estirados, havia sangue por todo o lado. Uma grande poça de sangue se formava no chão, escarlate. Os olhos estavam abertos e neles podia-se ver uma expressão de puro pavor de alguém que não esperava a própria morte.

Na verdade ninguém espera.

Eu me permiti absorver aquela imagem. Eu o observei morto, até que aquela imagem horrenda nunca mais pudesse ser esquecida, até que grudasse em minha mente. Havia um certo carinho em meus olhos, ternura. Eu soltei o ar percebendo só agora que eu não respirava.  Eu queria sair dali correndo e foi o que eu fiz. Minhas pernas me guiaram para o único lugar onde eu poderia estar a salvo daquela loucura. O meu lar. Eu entrei pela porta da frente, não me importando se minha mãe estaria lá, chegando do plantão. Não havia ninguém. Eu subi as escadas e até lá não havia caído nenhuma gota de lágrima.

E quando eu finalmente cheguei no meu quarto o meu mundo caiu. Eu estava acabada. Era o fim.

Penhascos do drama [Completo]Onde histórias criam vida. Descubra agora