2017
A bruxa nos contou o ritual, disse que precisávamos queimar folhas de sálvia e um objeto da pessoa ao anoitecer. Eu saí de lá fraca, me apoiava em Vênus para conseguir andar. Parecia que aquela casa tinha sulgado todo o resto de vitalidade que eu tinha. Foi aí que eu vi Charlie novamente, parecia estar ali presente, em carne e osso. Eu estendi minha mão e consegui tocá-lo. Meus olhos encheram- se de lágrimas. Eu o vi morrer e ele estava ali materializado na minha frente. Vênus me encarava preocupada, mais uma vez eu chorava, mais uma vez eu me destruía com esses sentimentos, mais uma vez eu estava me matando por dentro.
Não era ele, não era seu espectro, eu estava enlouquecendo da maneira mais cruel possível. Vênus me abraçou forte, eu ainda tinha o braço esticado tocando o rosto de Charlie e eu não pude suportar tamanha dor. Não era um fantasma, não era de verdade, mas parecia e eu me deixei acreditar.
— Por que você fez isso comigo ? — ele perguntou com raiva nos olhos.
A culpa me consumiu. Eu abri a boca pensando em falar algo, mas a fechei sem proferir nenhuma palavra. Minha mão tremia e eu já soluçava.
— Por que você foi tão cruel ? — ele juntou as sobrancelhas. — Eu tinha toda uma vida gloriosa pela frente, mas você tirou isso de mim, você me matou.
Então ele desapareceu com o vento me deixando ali, perdida. Vênus me levou para o carro. Gabriela observava a cena pasma e acreditava que eu tinha visto um fantasma. Eu estava confusa, mas aqueles olhos amendoados eram inconfundíveis, era ele. O desespero tomou-me, sem que eu pudesse fazer nada para impedir. Vênus acariciava meus cabelos e me olhava com seus grandes olhos cor-de-mel.
— Amor, calma. — ela pediu enquanto eu soluçava constante.
Gabriela entrou no banco de trás do carro. Estava com um certo receio, mas não disse uma palavra se quer. Eu me afundei no banco e senti a dor dilacerar meu peito e matar minha alma. Vênus estava com os olhos cheios d'água também, ela estava cansada e já não aguentava mais.
— Para de se matar por dentro. — ela disse com a voz embargada e aquilo foi de partir o coração. Vênus socou o volante e completou. — Você não se ajuda! Você está se auto destruindo, tá se matando por dentro. — Ela não me olhou em nem um segundo. Segurava as lágrimas e toda a emoção que carregava durante aqueles dias. — Você tá vendo sua própria culpa na sua frete, mas a culpa não foi sua. Você não o matou. — ela levantou a voz, havia uma nota de desespero nela. — Amor, você tá viva por culpa dele e eu agradeço muito a ele por isso.
Ela colocou a mão sobre minha perna de forma carinhosa e eu peguei em sua mão.
— Eu não suportaria te perder. — disse com a voz suplicante. — Eu te amo.
Eu me sentia idiota, eu me achava insuficiente e achava que não fazia diferença. Aqueles eram os últimos gritos da minha alma. Eu olhei para onde deveria estar a Vênus, todavia, lá estava ele, a morte empreguinada nos olhos. Minhas mãos começaram a tremer, eu estava tomada pelo terror. Abri a porta do carro e sai correndo, sem olhar para trás. O remorso embrulhava meu estômago, meus olhos estavam mais secos do que nunca e eu não consegui chorar. Parecia haver um balão no lugar de minha mente, sentia minha cabeça leve e distante. Todo meu corpo doía e meu único instituto naquele momento foi correr.
Não sei quando eu cai, mas houve um momento em que eu senti meu corpo se chocar contra o chão. Eu me encolhi ali, debaixo da árvore e pouco depois Vênus chegou. Minha alma tinha sido sulgada para fora do corpo, eu estava completamente acabada, não havia mais o que fazer. Eu não via mais nada, minha mente estava confusa. Lembro de Vênus se abaixando e dizendo alguma coisa desesperada. Eu fazia muito mal a ela. Senti seus braços me envolverem num abraço reconfortante.
— O que eu posso fazer para te ajudar amor ? — ela perguntou ao pé do meu ouvido.
Eu suspirei, respirei fundo e a fitei com os olhos cheios de súplica.
— Só não me abandona. — eu disse num fiapo de voz.
Afundei minha cabeça em seu pescoço, ela acariciou meus cabelos e atrás dela eu pude ver Charlie. Eu me afastei bruscamente, ela me encarou assustada, seus olhos intensos me encaravam.
— Não, de novo não. — eu murmurei baixinho.
Ela pegou em minhas mãos e apertou-as junto as suas. Então ele sumiu e Vênus me ajudou a entrar no carro.
Ω
Fomos direto ao cemitério depois que eu peguei a camiseta preferida de Charlie. O sol triste daquele dia estava pronto para se pôr, os portões ainda estavam abertos, nem havia o mínimo sinal dos coveiros. Gabriela tinha ficado em casa e eu tremia completamente de frio e medo. Vênus estava ali, como sempre. Não havia me abandonado em nenhum momento. Ela sussurrava para mim constantemente, toda via meus ouvidos zumbiam e eu não escutava nada ao meu redor a não ser a voz de Charlie dizendo coisas horríveis para mim. Ele não era assim, cruel.
Nós duas chegamos ao túmulo, eu estava vazia de mais para sentir alguma coisa além do remorso. Vênus despejou uma grande quantidade de folhas de sálvia sobre o túmulo que tomou uma tonalidade verde, refletindo a cor da erva. Esta, servia para estabilizar a alma do dono do objeto queimado, seu cheiro forte atraia o espírito e o fogo servia minimamente para fazer com que a sálvia se tornasse parte do mundo deles e deixasse o nosso. Ela me encarou esperando a blusa que eu segurava com toda a minha força querendo que a mesma de alguma forma completasse o pedaço que faltava em mim. Respirei fundo sentindo o cheiro de Charlie, mesmo depois de meses, ainda impregnado na camiseta. Todos que amamos tem um cheiro bom.
Minhas mãos trêmulas depositaram a camiseta acinzentada sobre o túmulo. Vênus me observava exitante, mas eu estava mais lerda do que nunca naquele dia. O Sol começava a se pôr no horizonte, eu precisava fazer. Peguei o isqueiro e com certa dificuldade consegui acendê-lo, aproximei- o da folhinha mais distante do centro e devagar ela pegou fogo. Em pouco tempo tudo estava queimando sobre o túmulo de mármore branco. O cheiro forte preencheu minhas narinas e eu cambaleei para trás.
Acendi um cigarro e fiquei ali, parada, fumando e esperando algo acontecer. Ou o túmulo de Charlie seria destruído ou o fogo acabaria tão rápido quanto começou. Enquanto eu observava as chamas crepitarem alegres e tragava meu cigarro calmamente o sol se pôs e era aí que a magia devia acontecer. O fogo ficou ainda mais feroz de repente e não pude deixar de notar as sombras que começavam a tomar forma em nossa volta, eram muitos fantasmas, todos absortos em seus próprios devaneios para se importar com o fogo.
O fogo já estava mais calmo quando eu cheguei a aquela conclusão. Charlie não apareceria. Eu o veria apenas como uma alucinação e estava destinada e definhar diante disso.
Uma brisa leve soprou e eu vi uma aparição tão boa que foi capaz de me deixar levemente entusiasmada. Gullar estava ali do outro lado das chamas com seus cabelos de algodão doce e os olhos negros. Sorriu para mim ao ver o que eu fazia.
— Tentando encontrar Charlie de novo honey ? — Perguntou enquanto atravessava as chamas deixando para trás um pozinho fino e pálido, quase sem cor. — Ele não vai aparecer. — afirmou com tanta certeza que eu levantei uma das sobrancelhas curiosa. —Ele está se culpando, ainda preso no purgatório, incapaz de voltar ou seguir em frente, pagando pelos próprios pecados.
Eu abri a boca pensando no que dizer, mas nada me veio a mente então fechei-a. Meus olhos se encheram de lágrimas, a culpa era minha. Eu o havia matado e naquele momento a vontade veio avassaladora. Eu ansiava pelo que era de longe o pior pecado : o homicídio da minha própria alma, o suicídio. O desejo por matar-me estava tão presente em minhas entranhas que eu não conseguia mais tirá-lo de lá. Era como um parasita.
Eu traguei o cigarro e quis cortar todo o meu corpo para a dor passar. Ainda não era o fim, havia mais uma coisa que Gullar não tinha me contado e eu precisava saber.
— Ele acha que devia ter sobrevivido para te ajudar, acha que só piorou a sua situação e você piorar a cada dia é culpa dele. — ele fez uma pequena pausa, apenas para dar um certo ar melancólico a sua fala. — E ele está completamente certo. — terminou observando meu estado catastrófico.
Meu coração começou a bater em descompasso, me sentia mal e estava pronta a partir.
Nós dois nos culpávamos pela dor um do outro.
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Penhascos do drama [Completo]
Ficção AdolescenteLara Bauer nunca teve uma daquelas histórias felizes com finais felizes. Nunca foi a princesa, sempre fora a coadjuvante da própria vida. E daí ela conheceu Charlie, e sua história que nunca foi sobre ela agora passava a ser sobre ele. Principalmen...