Capítulo 10 - Visita

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Mais um dia iniciava-se em nossas vidas. Um dia, em muitos aspectos, parecido com qualquer outro, mas, que para mim parecia um marco. Heráclito, o filósofo da cidade grega de Éfeso afirmava que nenhum homem atravessa o mesmo rio duas vezes, pois nem o rio nem o homem serão os mesmos. Com isso ele queria mostrar que estamos em constante mudança.  As experiências vividas no cotidiano, tudo o que aprendemos e vivemos vão nos moldando, transformando nossa forma de encarar a vida e reagir diante das situações.

Essas mudanças são tão sutis que não as percebemos. A Trintona de hoje parece-me a mesma Trintona de ontem. No entanto, há acontecimentos que são tão intensos que provocam mudanças abruptas. Naquela manhã eu era uma mulher bem diferente. Nas últimas vinte e quatro horas eu tinha vivido emoções tão díspares que, se fosse para escolher uma imagem que as representasse eu escolheria uma montanha russa.

Daquele dia em diante vivi sobressaltada. Cada vez que o telefone tocava, eu atendia esperando pelo pior. Cada vez que ouvia o meu nome, pensava: "É, a casa caiu". Buscava, a cada instante, o olhar do Sr. B. para ver ali algum sinal. Era angustiante.

Havia alguém de olho em mim. Essa pessoa conhecia o meu segredo é estava empenhada em revelá-lo ao meu marido. Quem seria essa pessoa e quais eram as suas razões? O que ela ganhava com isso? Ela bem poderia me chantagear, por exemplo, na esperança de ganhar algum dinheiro ou obter qualquer vantagem. Mas, ao invés disso, preferia enviar aquelas fotos. De uma coisa eu tinha certeza: eu tinha um inimigo. Ou inimiga.

Não pensei mais no meu amante. Havia excluído seus contatos da minha agenda e, medrosa como andava, deixei de atender números desconhecidos. Assim, passamos uma semana sem nos falarmos. Estava tão preocupada em não perder a minha família que ele, apesar do papel que desempenhou em minha vida por tanto tempo, deixou de ser um problema para mim. Uma vez que deixei de atendê-lo, para mim, era natural que deixasse de me procurar. Mais uma vez eu estava sendo egoísta.

Naquela manhã de quarta-feira eu não tinha compromissos agendados fora da fazenda. Então, fiquei por ali supervisionando a produção em companhia do Sr. B. Estivemos na fábrica de geleia, onde também é produzido o doce de leite e na queijaria. Queria poder descrever com exatidão os aromas desses locais.

Mais do que supervisionar, o que gosto mesmo é de por a mão na massa. Tratei logo de vestir a roupa adequada, por uma touca sobre os cabelos e uma máscara sobre o rosto e me envolver com o preparo do requeijão. Nossos produtos são artesanais, mas, são produzidos seguindo todas as normas sanitárias vigentes. Oferecemos aos nossos clientes a mesma qualidade que oferecemos para os nossos filhos.

O Sr. B. prefere as tarefas realizadas ao ar livre, por isso, deixou-me por ali e tratou de ir para o curral. Ele adora cuidar do gado e uma das tarefas que lhe dá mais prazer é coordenar o processo de ordenha. As vacas são conduzidas para a sala de ordenha, atraídas pela possibilidade de saborear uma bela ração. Adestradas que são, cada uma ocupa o seu lugar exato, tendo à frente a sua porção de alimento e onde terão suas tetas higienizadas e ordenhadas pelo equipamento mecânico. No tempo exato, a ordenhadeira "se desliga" do animal que segue seu curso ao longo das instalações modernas, a caminho do pasto. Em quinze minutos cumprem a função para a qual foram criadas e saem com a barriga cheia.

Todo esse processo é realizado duas vezes por dia. E quase sempre sob a coordenação do Sr. B. Da janela da queijaria, coberta com uma fina tela, eu avistei a silhueta do meu amor, quando, após terminada a ordenha, conduziu as vacas na direção no pasto. Vi também quando um veículo se aproximou da nossa propriedade. Vi ainda, quando o motorista do veículo o estacionou na sombra do flamboyant enorme que tem no pátio e se dirigiu ao meu marido. Mesmo de longe reconheci o veículo e o motorista. Era o meu amante.

Naquele momento percebi que a minha espera angustiante havia chegado ao fim. Meu castelo cor de rosa acabava de ruir. A gente colhe o que planta; eu havia plantado vento, agora colhia a tempestade. Uma ideia absurda me veio à cabeça: podia ser ele, o meu amante, o autor das fotos. Se fosse ele, certamente contava com um cúmplice. Afinal, na primeira foto aparecíamos os dois. Talvez ele tivesse se reaproximado de mim em um plano de vingança. Afinal, eu não agira corretamente com ele no passado. E agora, no ápice do seu plano, aparecia em minha própria casa para me humilhar.

Estava muito difícil para mim. Tinha que me concentrar no trabalho - a qualidade da produção dependia disso - e ao mesmo tempo não conseguia me desligar do que ocorria lá fora. Depois de conversarem um pouco sob a sombra do flamboyant foram em direção ao curral, atrás da casa de ordenha e eu os perdi de vista. Fiz um esforço hercúleo para voltar à minha atividade. E a hora seguinte passei entre tachos, peneiras e outros apetrechos transformando leite, manteiga e sal na delícia chamada requeijão da roça.

O trabalho é a melhor terapia que existe, desde que seja uma atividade prazerosa. Produzir alimentos é uma atividade prazerosa! Entretida ali na queijaria quase me esqueci da visita. Mas, a tarefa chegou ao fim e tive que ir embora. Caminhei até a casa com as pernas bambas. Decidi ir direto para a cozinha a fim de começar os preparos para o almoço. O carro continuava lá no pátio. No entanto, não havia nem sinal do seu dono ou do meu marido.

Deduzi que o "assunto" ainda não fora mencionado. Caso contrário, algum movimento já teria acontecido. Conhecendo o Sr.B. como conheço, diria que ele ouviria tudo sem fazer nenhum escândalo. Pediria o divórcio apenas, sem fazer questão, no entanto, de esconder a sua dor. Isso seria o pior: vê-lo sofrer, pois eu mais do que ninguém, sabia que ele não era merecedor de tudo aquilo. Mas, a gente não conhece de verdade nem a si mesmo. Podemos até imaginar uma possível reação para qualquer situação, mas, apenas o calor da emoção é capaz de determinar nossas atitudes. Quem nunca ouviu falar de alguém enérgico, objetivo, que simplesmente desabou diante de alguma adversidade?

De um comportamento desprezível como o meu, eu poderia esperar as piores reações do meu amor. Afinal, construímos nossa relação embasada na confiança. Apesar de termos iniciado nosso caso quando ainda éramos casados com outras pessoas, decidimos, ao assumir publicamente nossa relação, a sermos leais um ao outro. Quebrar um pacto de lealdade é um erro muito grave. E desnecessário também; hoje tenho consciência disso.

O Sr.B. entrou em casa por volta das onze horas, no momento exato de ir buscar as crianças na escola. Pegou a chave do carro, me mandou um beijinho de longe e partiu. Fui vê-lo sair como fazia sempre e vi que o outro automóvel também não estava lá. A visita tinha ido embora. Já sabia, de antemão, que qualquer novidade da qual meu marido estivesse a par não seria abordada durante o almoço. Nem no resto do dia. Teria que aguardar até a noite, no momento em que estivéssemos a sós em nosso quarto. Então, dei um jeito de esconder minhas preocupações lá no fundo da alma e tocar o dia como boa mãe e dona de casa que era.

Não tínhamos o hábito de falar de trabalho na cama. Mas, naquela noite o Sr.B. falou. Contou que recebera naquela manhã a visita de um possível comprador para um lote de bezerros. Nosso foco é a produção de leite, então, tão logo os bezerros machos são desmamados promovemos o seu descarte. Meu amante viera à fazenda interessado em comprar bezerros.

-Não sabia que esse senhor é fazendeiro - comentei, tentando parecer desinteressada.

-E não é mesmo - respondeu o meu marido - mas está pensando em entrar para o ramo.

Então era isso. E eu sofrendo à toa. 

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