Capítulo 17 - Refugiado

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-Calma, vamos lhe contar tudo. Pelo menos, tudo o que sabemos.- Disse a mulher, sorrindo de um jeito bem escandaloso, bem gentil, o que me deixou logo reconfortada.

Aí eu fiquei sabendo que foi uma surpresa imensa quando, ao vaguear pela mata, eles encontraram uma mulher desconhecida, desmaiada sobre uma pedra gigante. Que, num primeiro momento se sentiram temerosos por desconhecer as circunstâncias que me levaram até aquele local. Mas, que percebendo que eu precisava de cuidados, não titubearam em me carregar até a sua cabana e me oferecer socorro, de acordo com as suas possibilidades.

Isso ocorrera dois dias antes. Em todo esse tempo, cercaram-me dos cuidados possíveis naquelas paragens: me obrigaram a engolir chás e comprimidos para baixar a febre e estancar a infecção que a causava, trocaram minhas roupas por outras quentinhas e confortáveis e me mantiveram aquecida. Tudo o que eu pronuciara até então eram palavras desconexas e sons ininteligíveis, de modo de sabiam tanto de mim quanto no momento em que fui encontrada.

Onde é que eu estava? Essa pergunta só responderiam depois que eu dissesse como fora parar no local onde me encontraram. Contei quase tudo. Disse que estava hospedada em um hotel na Serra e que me perdera. E que, adormecida pelo cansaço fora surpreendida pela cheia inesperada. Eu era apenas uma hóspede da serra, não oferecia nenhum risco. Sendo assim, meus hóspedes me contaram sua história surpreendente.

O rapaz era um refugiado sírio. Em seu país era um arquiteto estabelecido: escritório respeitado, clientela garantida. Aproximando-se dos trinta anos, realizado profissionalmente, acreditava que já era hora de formar uma família. Aí estourou a guerra.

Quando tomou conhecimento da "Primavera Árabe" pelos noticiários da TV, o jovem não imaginou que o fenômeno pudesse interferir tanto em sua vida. O movimento, que se espalhou rapidamente pelo Oriente Médio e norte da África, consistia em protestos pela liberdade de expressão, democracia e justiça social, em países, em sua maioria, governados por ditaduras que vinham de longas datas.

Embora tivesse consciência das mazelas do governo de seu país, o rapaz acreditava que o melhor que podia fazer pela sociedade era trabalhar com seriedade, produzir riqueza para si e para aqueles que o circundavam, além de cumprir as leis e pagar os impostos. Era de família muito humilde e foi com dificuldade que conseguiu se diplomar na universidade e seguir a carreira de arquiteto.

Com a Primavera Árabe veio a guerra civil, a instabilidade e a violência nas ruas. Vários de seus amigos começaram a abandonar o país, seguindo para a Europa como refugiados, em uma viagem na qual muitos não alcançavam o destino final. E dentre os que pisavam em solo europeu, muitos eram obrigados a retornar ao seu país de origem.

Conhecidos seus perderam a vida nos confrontos. Mas, só quando seu pai foi morto em um ataque é que percebeu que não dava mais para continuar em seu país. Quando decidiu emigrar, quis fazê-lo dentro das leis. E assim, iniciou sua busca por um país que o aceitasse legalmente. Descobriu que o Brasil era o único país que aceita sírios com refugiados com visto no passaporte. E assim definiu seu destino.

A viagem, via Malásia, foi longa, cansativa e angustiante. Seguia para uma terra desconhecida, da qual pouco ouvira falar até então e cuja língua lhe era totalmente desconhecida. Mas, tinha esperança de encontrar a paz no novo lar. Só não podia esperar que a chegada ao país fosse tão traumática.

Ao aterrissar no Aeroporto Internacional Tom Jobim, o famoso Galeão, sentiu-se impactado pela bela visão da cidade e do mar e isso, num primeiro momento alimentou suas esperanças. No entanto, durante os procedimentos na alfândega houve um equívoco, o qual ele não entendeu bem, afinal, não falava uma única palavra em português e falava um inglês precário. Mas, o fato é que lhe foi atribuída a posse de uma bagagem composta por pasta base de cocaína e ele foi levado para a prisão.

Os primeiros dias no Brasil são um período que ele não gosta de relembrar em seus relatos. Prefere pular logo para a parte em que conheceu a companheira na cadeia. Na verdade, não foi exatamente no xadrez que se deu o primeiro encontro e, sim, na Delegacia da Polícia Federal onde ele havia comparecido para mais um interrogatório. Ela estava ali para servir de intérprete.

O contato entre ambos deveria ter se restringido à audiência. No entanto, tomado pela solidão, pelo desamparo e pela sensação de injustiça, o rapaz abriu a sua alma para a primeira pessoa que ele viu, em dias, capaz de lhe falar em sua língua nativa. E muito do que ele lhe disse, não foi traduzido por ela aos policiais.

A partir daquele dia ele passou a receber a visita da moça toda semana. E o cárcere, desde então, pareceu-lhe menos cruel. Foram descobrindo afinidades. Foram se descobrindo. E assim nasceu o amor improvável entre um jovem refugiado sírio, acusado de tráfico internacional de drogas e uma tradutora quarentona, bem resolvida.

Com o intuito de ajudar o namorado, a moça passou a se interessar pelos trâmites jurídicos de seu caso. Não fazia muito sentido aquela acusação, afinal, o nosso país é utilizado como rota internacional do tráfico, cujo destino normalmente é a Europa ou, mais raramente alguns países asiáticos. Geralmente, as mulas saem do país com a droga. Seu namorado chegava ao país, proveniente de um país árabe.

No entanto, sua situação era complicada e a dificuldade em se comunicar, ao chegar ao país, não lhe ajudou em nada. As respostas em inglês que dera às perguntas que lhe foram feitas mais o comprometeram do que contribuíram para livrar a sua barra. Um advogado conceituado foi contratado para cuidar do caso. No entanto, isso não evitou uma ordem de extradição.

E assim, em poucos dias, o rapaz via seu sonho de paz chegar ao fim. Retornaria a seu país em uma situação ainda pior do que aquela na qual emigrou, pois, iria diretamente para a prisão e enfrentaria um julgamento rigoroso. Mas, o pior mesmo seria deixar para trás aquela que se tornara seu outro eu naqueles últimos meses. Procuravam aproveitar cada momento que passavam juntos naquela cela. Ela tentava encontrar uma solução, ele já havia perdido todas as esperanças. E, quando ela ia embora, batia-lhe o desespero. Até que a data de extradição foi marcada. O advogado veio avisar, não havia mais o que ser feito. Tinham poucos dias para se ver e depois, restariam apenas as cartas.

No entanto, aquela mulher bem resolvida, prática e que até então fora tão comedida, não estava disposta a abrir mão de um amor tão intenso assim, não se ela pudesse fazer algo a respeito. E ela o faria, custasse o que custasse.

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