Capítulo 5 - Acidente

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Nosso quarto fica no final do extenso corredor que percorre toda a ala dos quartos. Já o quarto do meu filho é o primeiro, bem próximo das salas. Por isso, quando a campainha do telefone (sim, nós temos um telefone fixo, por questão de segurança, afinal, moramos em uma fazenda) soou no fim da madrugada, ele ouviu e a gente, não.

Quando um telefone soa na madrugada dificilmente traz notícia boa. Naquele dia também foi assim. Meu ex-marido tinha sofrido um acidente de carro na noite anterior. Nunca soube o que ele fazia tão longe de casa quando perdeu o controle do carro e caiu em uma ribanceira. Por sorte, pessoas que moravam próximo ao local viram tudo e ele pode ser socorrido antes de o carro explodir. No entanto, seu estado de saúde era grave, informaram-me do hospital no qual ele se encontrava em estado grave.

Meus filhos estavam desolados e eu sofria por não poder amenizar sua dor. Nós mães somos assim: preferimos que doa em nós a dor destinada às nossas crias. Eles queriam ver o papai imediatamente e foi difícil convencê-los de que isso não seria possível. Decidi que viajaria para ver a situação e tentar uma transferência dele para um hospital da nossa cidade.

Tomei essa decisão sem consultar o Sr.B. Eu sempre fora acostumada a tomar minhas decisões sozinha. E a responder rápido nos casos de crise. Por um momento eu me esqueci de não era mais uma executiva no comando de uma empresa e que transferia para minha vida pessoal o comportamento típico do cargo. Agora eu fazia parte de uma família, no sentido tradicional da palavra. Em uma família as decisões eram tomadas em conjunto. E isso deu origem a uma pequena, mas, não insignificante crise.

A sua perplexidade com minhas atitudes me deixou desorientada. Para mim, o momento era de atitude, não de discussões. Havia uma pessoa em um leito de UTI, precisando de cuidados e meus filhos estavam sofrendo por isso.Era irrelevante que essa pessoa fosse o meu ex-marido, alguém com quem o Sr.B. me dividira por um bom tempo.

Interrompi nossa conversa, pois precisava tomar providências. E durante o dia todo estive ocupada entre pegar a estrada, me responsabilizar pelo paciente no hospital, pagar as despesas médicas e o pior, comunicar a meus filhos que, infelizmente, não poderiam ver o pai por um bom tempo. Seu estado era grave, ele estava em coma induzido devido à gravidade das lesões.

Cheguei em casa cansada, quando já não dava tempo de preparar o jantar. Todos já se encontravam alimentados, assistindo TV. Crianças têm um modo peculiar de encarar a vida e as adversidades e, vendo meus filhos ali, brincando com seus irmãos por afinidade, eu poderia dizer que nem se lembravam mais do dia fatídico. Poderíamos ter uma noite normal, não fosse o olhar que o Sr.B. dirigiu a mim. Confesso que, naquele momento, achei desnecessário. Não sei se o meu senso prático ou o meu cansaço, ou ainda tudo isso, mas, o fato é que fui bem insensível. Preferi ignorar a reação do meu amor e me dirigi ao nosso quarto para tomar um banho e descansar.

Pela primeira vez, desde que nos casamos, dormimos sem o beijinho de boa noite. Quando meu marido foi para a cama eu já estava no sétimo sono. Na manhã seguinte, quando acordei, o seu espaço na nossa cama já estava vazio. Isso também estava fora dos padrões. Afinal, nosso costume era o seguinte: quem acordava primeiro tinha a missão de despertar o outro com beijos e mais beijos. Na sua falta, beijei o travesseiro e seu cheiro estava ali. Menos mal, ele havia dormido em nossa cama.

Sua ausência me fez abrir os olhos para o meu comportamento egoísta e inadequado. Percebi que tinha que tentar consertar o atraso. Não estava em meus planos magoar o meu amor. Como eu pudera ser tão insensível?

Felizmente consegui chegar à sala a tempo de compartilhar o café da manhã com a família. Eu estava constrangida, mas, tentei imprimir alguma normalidade às minhas atitudes. Tentei olhar nos olhos do meu amor, mas ele desviou o olhar. Ainda estava magoado. Chamei um funcionário para levar as crianças para a escola, pois precisava pedir desculpas. Para minha felicidade, ele não se recusou a conversar comigo.

-Eu pensei que fôssemos um casal - disse ele, me interrompendo quando tentei me explicar -, casais decidem juntos e agem juntos. Percebi como você ficou desconsertada quando percebeu que a notícia grave se referia a seu ex-marido. No entanto, eu estava do seu lado e iria fazer tudo para amenizar a sua dor, como um marido deve fazer. Você, porém, ignorou a minha existência e passou a agir como se fosse uma pessoa sozinha no mundo, a qual cabe tomar todas as decisões e providências.

Nesse momento eu fiquei ainda mais constrangida. Pela primeira vez me coloquei no lugar do Sr.B. Eu o deixara fora da minha vida em um momento de dificuldade. E essa dificuldade envolvia o meu ex-marido. E se fosse o contrário, como eu me sentiria? Percebi a extensão do meu erro e como seria difícil consertá-lo. Deixei que meu amor desabafasse e tudo o que fiz foi concordar em ele. Na verdade, eu não estava muito habituada àquele tipo de situação. Discutir a relação não havia feito parte do meu cotidiano na minha vida toda. Será que, finalmente, eu estava vivendo uma relação madura?

Pedi desculpas, reconheci o meu erro. Porém, não estava disposta a abrir mão de minhas crenças mais profundas. E dentre essas crenças, estava a de que, todo ser humano, independente de seu caráter ou da relação que, eventualmente tenha estabelecido antes conosco, merece a nossa misericórdia. E meu ex-marido, naquele momento, precisava de minha assistência: estava internado em uma UTI, sem dinheiro e sem a assistência da família, a qual fora sempre ausente em sua vida. E tinha mais: eu devia isso a meus filhos.

Apesar de não ter aceitado bem a minha decisão de continuar a dar assistência a pai dos meus filhos, o Sr.B. resolveu não estender o assunto. Disse que estaria ao meu lado, apesar de não concordar com o meu envolvimento com aquela situação. E assim, saímos de casa rumo aos nossos compromissos profissionais. No entanto, ficou aquela sensação de que algo havia se quebrado entre nós e que, dificilmente, as coisas voltariam a ser como antes.

Os dias se passaram e a situação do meu ex-marido foi ficando cada vez pior. A transferência de hospital não pode ser realizada e ele continuava em coma induzido. E para piorar a situação, seu organismo não respondia ao tratamento. Na nossa casa, o clima não estava melhor. Com o passar do tempo, meus filhos foram se conscientizando da gravidade do quadro de saúde do pai e isso os deixava numa tristeza de dar dó. Eu, por minha vez, não conseguia disfarçar minha angústia. Por mais que eu a justificasse pelo sofrimento dos meus filhos, não dava para negar para mim mesma que a possibilidade de que o pai dos meus filhos viesse a morrer estava me matando um pouco também. E o Sr.B. é sensível demais para não perceber isso.

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