Capítulo 6 - Luto

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Infelizmente meu ex-marido não respondeu ao tratamento e desistiu de viver. Pensando bem, ele nem teve a oportunidade de fazer essa escolha. Seu organismo faliu e pronto. Como dar uma notícia dessas a duas crianças apaixonadas pelo pai?

Não foi fácil. Quando cheguei ao hospital para mais uma visita, uns três dias depois do acidente, depois de uma viagem longa, soube que acabara de se passar o óbito. Não pude conter o choro. O Sr.B., que fizera questão de me acompanhar, não disse nada, apenas me acolheu em seus braços e me fez apoiar o rosto em seu ombro.

Não reprimi meu luto, deixei que as lágrimas rolassem à vontade. Chorei pela perda inestimável dos meus filhos, chorei pelo casamento fracassado da minha juventude, chorei por não ter conseguido transformar o meu ex-marido em uma pessoa realizada e um profissional bem sucedido, chorei por ter desistido de nossa família lá no começo, chorei, chorei, chorei.

E em todo esse tempo, o Sr.B. permaneceu em silêncio, apenas emprestava o seu corpo como apoio para o meu. Sua mão acariciava meus cabelos e seu cheiro me dava a segurança de que eu precisava e a certeza de que não estava sozinha.

Meus pensamentos se voltaram para os tempos do nosso namoro, quando eu estava na faculdade e não tinha dinheiro nem para comprar roupas novas, mesmo trabalhando pesado de segunda a sábado. A mensalidade consumia quase a totalidade do meu salário. No final da semana eu estava exausta por conciliar trabalho e faculdade à noite. E pelas longas madrugadas de estudo. Por isso, meu programa preferido no sábado à noite era ir para a cama cedo.

Meu ex-marido, à época, namorado, nunca reclamou por ter que abrir mão dos programas com nossos amigos para me fazer companhia. Ele torcia pelo meu sucesso e falava de mim com orgulho. No nosso círculo social eu era a primeira pessoa a fazer um curso superior e isso nos deixava cheios de esperança em um futuro melhor para a família que iríamos construir.

Eu insistia para que ele também voltasse a estudar, mas, ele achava que não levava jeito para isso. Lembro que ele afirmava que sua função era servir como um elemento de apoio para mim. E, quando a empresa em que eu trabalhava passou por uma crise e atrasou os salários ele se desdobrou para que as mensalidades do meu curso não se atrasassem. Naquele tempo era inimaginável a ideia de um futuro sem ele ao meu lado.

E agora, ele estava morto. Tão jovem! Nos últimos tempos eu nada sabia sobre a vida que ele estava levando, quem eram as pessoas do seu convívio, quais eram seus projetos de vida, se os tinha.

Os dias seguintes foram de adaptação à uma nova realidade: meus filhos eram órfãos. Apesar de não se fazer presente na vida das crianças, o pai era uma figura muito importante para elas, evidentemente. Mas, criança é criança, tem uma capacidade bem maior do que a nossa para se adaptar às situações. Já meu luto foi mais profundo. Não esperava por isso. Mas, nas semanas que se seguiram ao acidente e à morte do meu ex-marido era evidente o meu luto.

Eu tentava disfarçar a tristeza em respeito ao Sr.B. e à nossa família. Mas, às vezes, era inevitável. Então, eu me recolhia às lembranças e principalmente, à minha sensação inexplicável de fracasso. De repente, comecei a me culpar por não ter sido uma esposa melhor durante o primeiro casamento; por não ter sido mais incisiva com o ex para que ele estudasse e construísse uma carreira sólida. Quando morreu, o pai de meus filhos não possuía um único bem, não tinha seguro de vida, não tinha recursos suficientes para o próprio sepultamento.

O Sr.B. dizia que eu não deveria me sentir culpada por isso. Afinal, tinha sido a mulher dele e não a mãe. Que eu estava me cobrando por atitudes que cabem aos pais e não a uma esposa. Que, enfim, meu ex-marido tinha vivido e morrido de acordo com suas próprias escolhas e que o que eu podia fazer melhor por ele era cuidar bem dos nossos filhos. E isso eu estava fazendo muito bem.

O tempo passou e o Sr.B. foi paciente. Eu venci o luto e voltei à vida. Uma etapa de minha vida tinha ficado definitivamente para trás. Perder uma pessoa que fora do meu convívio mexeu muito comigo, mas aprendi com a experiência. Decidi que faria o melhor para as pessoas que eu amo e isso incluía ser uma esposa muito dedicada ao Sr.B. Faria da sua felicidade a razão de minha vida. Nunca mais me envolveria em aventuras como aquela com o estudante de agronomia e jamais trairia meu marido.

Eu que passei longos anos vivendo no automático, aceitando as circunstâncias como elas se apresentavam para mim, comecei a refletir sobre o que queria para mim e para os meus; sobre as escolhas que faria dali em diante e sobre como elas impactariam a vida daqueles que me são caros. Seria isso um sinal de que estava amadurecendo?

O acidente e a morte do meu ex-marido e, principalmente meu comportamento diante desses fatos, dando toda a assistência necessária e mal disfarçando meu sofrimento durante o enterro deu o que falar em nossa pequena cidade. Isso foi um fato novo para mim. Eu nunca havia sido alvo de fofocas antes, pois, sabia ser discreta, apesar da vida bem peculiar que levara até bem pouco tempo.

Dessa vez, porém, eu estava exposta. E fui, durante algum tempo, o assunto preferido das rodas de conversa. Alguns louvavam minha magnanimidade. Afinal, a traição do meu ex-marido fora a razão do nosso divórcio. E ainda assim, quando ele precisou de mim, eu estava lá, pronta para lhe assistir.

Por outro lado, havia aqueles que julgaram minha atitude como inadequada. Pois, apesar de já estar casada com outro homem, sofria pela morte do ex. "Aí, tem coisa", diziam. "Coitado, é um corno", afirmavam sobre o Sr.B. Tirando a parte que mencionavam o meu amor, eu até me divertia com os comentários. Ele, por sua vez, dizia não se importar com os boatos, pois, confiava em mim. Mas, deixou escapar que se tivesse havido um motivo para se sentir inseguro, esse motivo não existia mais, pois meu ex-marido estava morto.

Os últimos acontecimentos acabaram por me fazer voltar o olhar para mim mesma e descobrir minhas fragilidades. Eu não tinha o poder de controlar tudo e o sofrimento era algo que eu não podia evitar sempre. Aquela mulher prática que construí às vezes submergia para dar lugar a uma pessoa como qualquer outra, com suas vulnerabilidades. Isso acabou por dar uma nova dimensão ao meu relacionamento com o Sr.B.

Passamos a falar de sentimentos: ciúmes, inseguranças, incertezas. Falei do medo que tinha de perdê-lo. Assumir isso para mim mesma foi um grande passo; verbalizar isso para ele, libertador. Ele, por sua vez, assumir sentir muito ciúme de mim. Também não queria me perder, mas, conhecia meu espírito libertário. Em comum, tínhamos a certeza de que o futuro é uma incógnita e sendo assim, o melhor que tínhamos a fazer era tirar o máximo de proveito do presente. E o nosso presente era os dois ali, na nossa cama, partilhando carícias ternas. Naquela noite não fizemos amor. Dormimos de conchinha, aconchegados ao calor que nossos corpos emanavam, embalados pelas nossas vozes falando de amor um para o outro.

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