Capítulo 16 - À beira da morte

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A manhã seguinte me encontrou em estado febril. A roupa molhada, as baixas temperaturas, os ferimentos, tudo isso me deixou gravemente doente. O sol foi se levantando lentamente até atingir o ponto mais alto no céu. Seus raios secaram a minha roupa, queimavam a minha pele, mas, eu continuava sentindo muito frio. O regato voltou ao seu curso normal e agora serpenteava entre pedras bem menores, distantes do local onde eu me encontrava.

No entanto, eu não tinha forças para deixar a pedra. Alternava períodos de consciência com outros de delírios, a maioria deles angustiantes. Em um deles eu estava ajoelhada aos pés do Sr.B. implorando o seu perdão, mas, ele me ignorava e dava as costas. Em outro, meu amor me acusava diante dos meus filhos e todos eles arrumavam as malas para ir embora, enquanto eu ficava sozinha na fazenda. Em todos esses pesadelos o que mais me machucava era o olhar do meu marido. Se ao menos estivesse carregado de ódio, mas, não. Era mágoa o que eu via ali.

Não sabia o que era pior: os momentos de lucidez ou os de loucura. O fato é que, em todo instante lá estava a acusação da minha própria consciência. Quanto mais o tempo passava menos eu tinha certeza de que conseguiria sair dali. Minhas condições físicas estavam cada vez mais debilitadas e a única esperança era que alguém me encontrasse. Mas, será que havia alguém me procurando?

Na noite anterior eu fugi à pé, com a roupa do corpo, sem documentos, sem dinheiro, sem cartões do banco. Nessas condições, certamente, o Sr.B. pensou que eu não iria longe. No entanto, à medida em que o tempo passou, conhecendo-o como eu conheço, sei que, por mais que estivesse magoado, deve ter ficado preocupado. Será que procurou por mim? Talvez estivesse desesperado nesse momento. Mais uma vez me senti culpada.

Eu não tinha noção de onde me encontrava. Mas, pela velocidade da água e pelo tempo que levei para chegar à pedra onde consegui me segurar, dava para imaginar que estivesse bem longe da pousada. Por mais que me esforçasse não conseguia ouvir um único som da civilização, um grito, uma música, o barulho de um carro no cascalho, nada. Por duas vezes tentei gritar, mas, fraca como estava consegui emitir apenas um ruído fraco. Adormeci de novo, o sono mais uma vez agitado por pesadelos.

Acordei com uma chuvinha fininha caindo sobre o meu corpo. Mais essa! A chuva me manteve acordada por um tempo maior. Consegui me virar e deixar que suas gotas invadissem a minha boca. Foi uma sensação deliciosa! Consegui me arrastar um pouco mais e encontrar uma posição mais confortável para as costas. O sangue secara em minhas mãos, mas continuava sentindo dores por todo o corpo e na cabeça. Mal conseguia abrir os olhos. Tentei gritar mais uma vez, sem sucesso. Adormeci de novo.

Dessa vez o sono foi intenso, profundo e demorado. Quando acordei era dia de novo. Eu não tinha certeza se já se passara uma noite inteira e já era dia de novo ou se ainda estávamos na mesma tarde. Já estava ficando confusa; e com fome e sede. O frio não me abandonava, a secura da minha boca já se estendia para a garganta e eu não tinha forças sequer para tossir. Tive a certeza de que iria morrer ali. Dormi de novo.

Lembro que quando tentei abrir os olhos de novo não tive sucesso. A cabeça doía, meu estômago revirava e a vontade que eu tinha era de mergulhar de novo no sono profundo. Essa necessidade de adormecer, se possível para sempre, tornou-se mais intensa à medida em que eu me lembrava dos fatos recentes: Sr.B., fotografias, mensagem no celular...

Aos poucos fui tomando consciência do lugar onde eu estava. E esse lugar não era a pedra. Eu ainda podia sentir o cheiro da mata, ouvir os seus sons. No entanto, a luminosidade já não era tão intensa. Meu corpo descansava em um ambiente macio e embora ainda me sentisse febril, meu corpo estava coberto por uma manta macia de lã. E, principalmente, um cheiro delicioso de comida preenchia todo o ambiente.

Motivado por esse perfume, meu estômago deu sinal de vida e consegui, enfim, abrir totalmente os olhos. A primeira imagem que me veio aos olhos foi o teto de pedra. Pouco a pouco fui percebendo o ambiente totalmente estranho no qual me encontrava. Era uma cabana bem rústica, improvisada entre a formação rochosa bem comum em regiões serranas. Um rosto estranho se materializou diante dos meus olhos.

-Ah! Que bom! Você acordou.

Tentei articular umas palavras, sem sucesso.

-Não se esforce, fique calma.- A mulher ajeitou as cobertas e encostou o dorso da mão na minha testa.

-Ainda tem febre, vou buscar um remedinho.

Em pouco tempo, a mulher voltou trazendo um copo de chá e um comprimido. Fez-me engolir tudo, levantando um pouco a minha cabeça. O chá tinha um gosto amargo, mas, foi muito bom sentir o líquido descendo pela minha garganta. Fechei os olhos de novo. O esforço feito para tomar o remédio me deixou cansada. Ouvi vozes.

Um homem acabava de chegar e a mulher atualizava o meu boletim médico. O homem se mostrou feliz pelas notícias recebidas, enquanto entregava à mulher o resultado da sua pescaria: um peixe tão grande que, segundo ela, garantiria o alimento por uma semana. O homem falava português com dificuldade e muito do que dizia eu adivinhava pelas respostas que a mulher lhe dava. Esta, por sua vez, tinha uma fala muito bem articulada, própria de quem tem um alto nível cultural. No entanto, habitavam uma cabana no interior da Serra do Cipó. Qual o segredo daquela gente?

Talvez fosse resultado dos delírios próprios de meu estado febril. Mas, o fato é que minha mente foi tomada pela curiosidade, apesar do estado precário do meu organismo. Um estrangeiro e uma mulher de alto nível cultural vivendo de modo primitivo no interior da serra. Qual era a história daquela gente?

Ouvi os sons típicos de uma cozinha quando se está a terminar o preparo de uma refeição: as louças sendo separadas, comida sendo provada, mesa sendo preparada. Esses ruídos aliados ao cheiro delicioso que chegava às minhas narinas acabaram por me despertar totalmente. Tentei articular um "oi, gente!", mas, o que saiu de minha garganta foi um som debilitado e incompreensível. Foi o suficiente para que o casal se aproximasse da cama na qual eu me restabelecia.

-Oi!- Consegui, enfim, emitir um som inteligível.

-Oi, Bela Adormecida! Pensamos que não fosse acordar nunca desse sono encantado.

Tinha pressa em saber como foi que fui parar ali, quem eram aquelas pessoas, onde é que eu estava. Minha garganta destravou-se totalmente e disparei a fazer todas as perguntas que ocupavam a minha mente. 

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