Capítulo 19 - Vida na Serra

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Contando com os cuidados de meus novos amigos fui me recuperando lentamente. Perdi a noção de quanto tempo estava ali naquela cama. Os recursos eram bem escassos e dei muito trabalho para meus cuidadores. Nos primeiros dias um desânimo muito grande tomou conta de mim e a sensação que tinha era de que ficaria ali enterrada para sempre. Sendo assim, não fiz conjecturas de como seriam as coisas quando eu pudesse me locomover e sair dali.

Ao me encontrarem desfalecida às margens do riacho quando foram pescar, meus anfitriões não pensaram no risco que corriam ao me socorrer. Eu poderia denunciá-los, não é verdade? No entanto, a piedade falou mais alto e tudo o que pensaram, ao perceber que eu ainda respirava, foi em levarem-me à sua cabana e cercarem-me de cuidados.

Eles viviam essencialmente da pesca. Periodicamente levavam peixes para vender nos povoados e cidades próximas e com o dinheiro obtinham o mínimo necessário para viver. Era uma vida livre, mas escassa de recursos. E solitária também. Eles tinham muitos livros e passavam longas horas lendo e conversando sobre essas leituras. Eu também sempre gostei de ler e ali, sem ter o que fazer, sem poder nem me locomover direito, os livros se tornaram companhia essencial.

Uma noite em que a lua estava especialmente bela nos sentamos nas pedras, em volta da cabana e nossas conversas se voltaram para um tema que até então tentávamos evitar: o futuro. A essa altura eu já havia contado que tinha um marido e filhos, os quais, certamente acreditavam que eu havia morrido. Queria muito reencontrá-los, recuperar minha vida de antes.

Para retornar à vida de antes um único obstáculo precisava ser vencido: reestabelecer minha saúde. Obviamente, isso seria mais rápido se pudesse contar com atendimento médico. Mas, sem poder me locomover e habitando um lugar no qual a única forma de alcançar era através de uma longa caminhada, só restava aguardar que o tempo passasse e a natureza seguisse seu curso.

Quando procuravam um lugar para se abrigar na Serra, meus amigos escolheram uma locação com base em dois critérios bem específicos: dificuldade de acesso e proteção contra as intempéries naturais. A última coisa que eles desejam é serem encontrados. Por isso mesmo, seu recanto era bem remoto, em uma caverna muito bem disfarçado pela vegetação natural.

No modelo de vida que escolheram para si, poucos artefatos da vida moderna eram necessários, sendo o principal deles, os livros. Boa parte de suas necessidades eram satisfeitas com recursos oferecidos pela própria natureza. O tempo do casal era dividido de forma bem simples, mas de modo que o tédio não encontrava espaço em sua rotina.

Uma parte considerável do tempo era gasta no preparo da alimentação. Essa atividade incluía cultivar algumas hortaliças à beira de um curso d'água próximo. Quem conhece uma região serrana sabe que a terra não prima exatamente pela fertilidade. Mas, produzir para a subsistência não exige grandes áreas férteis. Além do mais, uma grande lavoura certamente chamaria a atenção. E, serem notados era algo que meus anfitriões certamente não desejavam.

A pesca também era uma atividade significativa. Os peixes não só serviam como alimento, como também eram vendidos nas cidades próximas. Com o dinheiro arrecadado, meus amigos adquiriam remédios, artigos de higiene pessoal e tudo o mais necessário para a sobrevivência.

Outro tanto de tempo, meus amigos usavam para estudar. O estrangeiro aprendia a língua portuguesa. Sua amada aprendia o árabe. Ambos aperfeiçoavam o inglês. E liam literatura brasileira, os clássicos da literatura mundial, tanto em inglês quanto em português, além de estudarem Filosofia e História.

Meu amigo também falou de seus sonhos naquela noite. Queria voltar à civilização e limpar o seu nome. Só não sabia como. Ele se sentia culpado pelo fato de sua namorada ter deixado o trabalho, os amigos, a família para segui-lo. Ela, no entanto, reafirmava que nunca, em toda a sua vida organizadinha, tinha sido tão feliz. Dizia isso enquanto afagava as longas madeixas do amado. Lembrei de como era macia a cabeleira do Sr.B.

Eu prometi que, quando retomasse minha vida não pouparia esforços para ajudá-los nesta tarefa. No entanto, tudo aquilo nos parecia um sonho distante demais. Eu já conseguia dar alguns passos e já conquistara alguma independência, mas, ainda estava muito fraca. Não aguentaria uma caminhada de quase um dia inteiro, por trilhas, até a cidade mais próxima, Santana do Riacho.

Mais uma semana se passou. Sentindo-me com mais vigor, decidi que era hora de me arriscar. Iria procurar socorro na civilização. Era madrugada ainda quando deixamos a cabana. Aquele era dia de vender peixes e meus amigos decidiram fazer comércio em Santana para me guiarem até lá. A marcha era lenta pois eu ainda não estava totalmente restabelecida. Caminhava bem devagar e tinha que parar constantemente. Gastamos o dobro do tempo. Quando chegamos à cidade eu estava em frangalhos.

Seguimos direto para o Posto de Saúde. Lá recebi o atendimento básico possível e o médico, bastante atencioso, decidiu que o melhor seria me transferir para Belo Horizonte. Despedi-me de meus protetores prometendo voltar, assim que fosse possível. Quando preparavam a documentação para a minha transferência descobriram aquilo do qual eu desconfiava: era tida como desaparecida ou morta.

Quase dois meses haviam se passado desde que eu deixara a pousada naquela fuga desesperada. É de se imaginar que ninguém esperava me encontrar com vida depois de todo aquele tempo. Também não sabia como seria recebida pelo Sr.B. Mas, tinha que "dar minha cara a tapa". Precisava explicar tudo, pedir perdão e aceitar a sua decisão. E estava com muita saudade dos meus filhos. Uma viagem de uma semana virou um afastamento de dois meses. Nunca ficara tanto tempo longe da minha prole.

Um misto de alívio e apreensão me tomava à medida em que ia me submetendo à uma série de exames em um hospital conceituado da cidade de Belo Horizonte. Meu estado de saúde física era bem melhor do que se suspeitava anteriormente. Minha mente, no entanto, era um turbilhão. Ao mesmo tempo em que ansiava por me encontrar novamente com o Sr. B., receava pelo conteúdo de nossa conversa. E agora, eu estava cada vez mais próxima desse reencontro.

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