Capitulo Um

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Normandia, França Março de 1794

Embora sentisse o calor do sol às suas costas, Adrienne estremeceu com um arrepio. A noite que passara em claro afetara-lhe os nervos. Enfiou as mãos nos bolsos do calção que um dos cavalariços esquecera no estábulo e perambulou pela vereda, relutando em retomar ao castelo. Lá, paredes frias e salões vazios a aguardavam. Todos os criados já haviam partido.
Sua missão correra a contento, mas, a despeito do alívio que sentia, Adrienne ainda estava agitada. A cada vez que se postara na praia, olhando o barco de pesca do velho Pai Duroc levar um grupo de fugitivos, ela experimentara um calafrio de medo e apreensão. Bem que tentara a todo custo ignorar o próprio nervosismo. Afinal, havia muito que aprendera a ignorar coisas que não podia mudar. No entanto, nunca chegara a alcançar pleno êxito. Em vez de indiferença, tudo o que conquistara fora o conformismo.
Adrienne massageou a nuca para aliviar os músculos doloridos. Enquanto ia caminhando, chutava aqui e ali os pedregulhos que surgiam na terra revolvida pela tempestade ocorrida dois dias antes. Sua boca generosa, de lábios cheios e muito vermelhos, curvou-se num melancólico sorriso quando ela se recordou de como a mãe insistira em ordenar que aquele caminho fosse aberto em uma trilha ondulante. Adrienne suspirou e apertou os olhos para não chorar.
Um súbito ruído fez com que ela se virasse instintivamente. Firmou a vista. Mas tudo continuava igual: árvores e arbustos despidos de folhagem espalhavam-se pelo parque abandonado.
Outra vez o ruído... Antes mesmo que o cérebro de Adrienne registrasse o choro de uma criança, ela se pôs a correr. Deteve-se nas franjas do roseiral que crescia desordenado e chamou pela criança. Não obteve resposta. Sem 'fazer caso dos galhos despedaçados que se enroscavam em sua camisa, abaixou-se, passou sob a treliça e avançou. Avançou tão rápido que quase passou pela criança sem vê-Ia.
A criança gemeu fracamente. Adrienne virou-se depressa na direção do som, abriu passagem entre os arbustos e deparou com uma mulher jovem encolhida por entre as hastes da relva alta. Ela apertava uma criança contra o peito.
Eu lhe imploro, não machuque minha criança!  suplicou e, a despeito da voz embargada, seus olhos luziram com determinação.  Faça o que quiser comigo, mas não maltrate minha criança!
Adrienne ajoelhou-se a seu lado e, fitou-a.
Está tudo bem, acalme-se. Ninguém Ihes fará mal algum.
Os olhos da outra encheram-se de lágrimas. A suavidade de Adrienne pareceu reavivar-Ihe o pouco que restava de suas forças.
Então, a senhora não é um deles? Mas eles me viram na estrada. Estou certa de que me viram...  a desconhecida sussurrou, enquanto olhava nervosamente em tomo de si.
Quem a viu?
Os homens... os homens que me seguiram desde Paris.
A mulher engoliu com dificuldade e olhou por sobre o ombro de Adrienne. A seguir, voltou a encará-Ia e endireitou-se.  Eles mataram meu marido, Jean de Lambert. Sou Charlotte de Lambert.
Adrienne logo reconheceu o nome do nobre que tentara resgatar o pequeno delfim de seus captores e pagara com a própria vida por sua ousadia.
Eu a ajudarei no que estiver a meu alcance  assegurou-lhe.
E quem é a senhora?
Sou Adrienne de Beaufort.
Ao ouvir o nome dela, Charlotte de Lambert percebeu que estava a salvo. Com um suspiro, baixou o rosto e estreitou a criança.
Alguém a mandou procurar-me?  Adrienne perguntou. A outra encarou-a e assentiu, incapaz de falar.
Adrienne então ajudou-a a levantar-se.
Venha comigo. Eu os levarei até o castelo.
Ela conduziu Charlotte e a criança por um atalho. Quando estavam apenas alguns metros do castelo, ouviu o latido furioso de uma matilha de cães. Sentiu-se tomada de desespero, porém, continuou guiando os fugitivos com segurança, exortando-os a apressar o passo. Uma vez no interior do castelo, cerrou a pesada porta de carvalho atrás de si.
Os latidos tornaram-se mais altos. Adrienne tentou calcular a que distancia os cães se achavam dali. Se Deus a ajudasse, ainda teria tempo de ocultar a mulher e a criança. O castelo eslava deserto; mesmo assim, ela baixou instintivamente a voz e murmurou:
Eu os esconderei em um quarto secreto. Lá ficarão em segurança. .
Charlotte de Lambert retesou-se.
Oh, por Deus, não me encerre em um quarto escuro! Eu não suportaria a escuridão de novo!
Adrienne empurrou-a com firmeza. Ensaiou um sorriso para acalmá-la.
Há velas, comida e bebida no quarto. Ficarão bem, não se preocupe. E, assim que for possível, irei vê-los.
A outra se pôs a chorar baixinho, e a criança também. Mas Adrienne não dispunha de tempo para confortá-Ias. Os cães já se acercavam do castelo. Ela conduziu-as à biblioteca e a um pequeno gabinete. Aí, estendeu a mão para tocar o retrato que guardava a entrada do aposento secreto. Como sempre, os olhos de sua ancestral, Isabella di Montefiore, fitaram-na de modo distante e altaneiro. Ainda assim, Adrienne experimentou uma sensação de intimidade. A frieza daquele olhar jamais a enganara. Nem mesmo antes do fatídico dia em que lera os diários de Isabella e conhecera suas paixões e segredos.
Posicionando as mãos na parte interna da moldura folhada a ouro, deslizou-as cuidadosamente em direção ao centro do quadro. Encontrou uma sutil elevação na tela, depois outra. Pressionou-as. Em seguida recuou. O retrato afastou-se da parede para revelar a existência de uma diminuta porta.
Adrienne virou-se e gesticulou para a outra mulher.
Entrem. Depressa! Não há tempo a perder!
Charlotte meneou a cabeça, trêmula, os olhos arregalados.
Adrienne puxou-a pelo braço e introduziu-a no quarto oculto. Acendeu uma vela, virou-se para Charlotte e apertou-lhe a mão.
Nada de mal lhe sucederá. Compreende?
Fungando, Charlotte assentiu mudamente. Adrienne sorriu e, com o coração apertado, deixou o aposento e fechou a porta.
Ela subiu as escadas às pressas, já desabotoando a camisa. Em seu quarto, despiu também os calções e descalçou as botas. Atirou-os no fundo de um guarda-roupa e enfiou um vestido. Ainda tinha os pés nus quando escutou batidas na porta do saguão.
Adrienne foi até a janela do quarto e espiou.
Quem está aí?  inquiriu, embora já soubesse que o incômodo visitante só poderia ser Marcel Fabien.
Ela fez uma careta de desprezo. Fabien. Adrienne não se esquecera de que ele havia servido o Castelo de Beaufort. E tampouco se esquecera de que havia sido expulso de lá por desonrar uma das criadas.
Agora Fabien defendia os ideais da Revolução. Não obstante, comprazia-se em ostentar anéis de pedras preciosas e camisas de punhos rendados. Além disso, apropriara-se, muito convenientemente, da carruagem e dos cães do conde de Louvelle ao tecer suas intrigas para chegar ao posto de chefe do Comitê de Segurança Pública em Calais.
Um homem alto e troncudo surgiu sob a janela.
O cidadão Fabien deseja lhe falar, cidadã Beaufort.-ele gritou-lhe, obviamente contrariado por ter que inclinar a cabeça para olhá-la.
Descerei em um momento  Adrienne anunciou, fechando a janela ruidosamente.
Ela apanhou um xale e desceu as escadas com toda a lentidão de que foi capaz. Aquela pequena demonstração de rebeldia, ainda que inútil, reconfortava-a, pois o fato de estar à mercê de Fabien era algo revoltante.
Quando Adrienne abriu a porta, ele saudou-a com um sorriso meramente polido e um meneio casual que poderia muito bem ter passado por um insulto. Enquanto tamborilava no' degrau a bengala com punho de prata, seu olhar percorreu o corpo dela com uma avidez mal dissimulada.
Adrienne respirou fundo, lutando contra o impulso de retroceder e bater a porta.
Há alguma razão particular para que queira me falar a esta hora da manhã, monsieur Fabien?
Os olhos azuis dele se estreitaram. Fabien curvou-se ligeiramente.
Digamos que eu poderia mandá-la para a prisão por sua insolência. Ou, talvez... uma vez que se recusa a me chamar de cidadão Fabien, por que não me chama simplesmente de Marcel?
Assim dizendo, ele acariciou-lhe a face. Adrienne sentiu o sangue gelar-lhe nas veias. Não era a primeira vez que Fabien a molestava com suas insinuações; porém, nunca antes se atrever a tocá-la. Ela crispou as mãos. Disse num tom gélido:
Não tenho costume de me dirigir a estranhos com tamanha intimidade.
Fabien espalmou a mão sobre o próprio peito e afetou surpresa.
Assim me ofende, cidadã Beaufort. Como pode me considerar um estranho? Tive esperança de que me visse como um amigo.
Realmente?  Adrienne ergueu o queixo de modo desafiador.
Fabien apertou a bengala, enervado com o desdém implícito naquela única palavra. Sorriu para disfarçar sua cólera e perguntou num tom ligeiro:
Não me convida para entrar? Gostaria de lhe falar.
Relutante, ela retrocedeu para dar-lhe passagem. Fechou a porta e precedeu-o até o salão principal. Ali, apertando o xale contra o corpo, foi até uma das janelas e pousou as mãos no parapeito. A aflição cresceu dentro de seu peito quando avistou a matilha de Fabien farejando o caminho por onde, minutos antes, ela havia conduzido Charlotte de Lambert e a criança.
Os cães, agitados, latiam e tentavam se soltar das correias.
Parece que farejaram alguma coisa  Fabien observou. Sobressaltada, Adrienne sentiu o hálito dele em sua nuca.
Virou-se, corando.
Há algo errado, cidadã Beaufort?
Ela mordeu a língua para não dizer o que pensava. Com um misto de medo e de indignação, encarou-o e forçou-se a sustentar o olhar.
Sim. Definitivamente, há algo errado, monsieur Fabien. Não escapou a ele a ênfase que Adrienne imprimira às duas últimas palavras. Nem o menosprezo aí contido.
Fabien pousou a mão no ombro dela. Os dedos fortes enterraram-se na carne macia como garras de uma ave de rapina.
Não estou acostumada a enfrentar o assédio de homens em meu próprio castelo.
A altivez de Adrienne atingiu-o em cheio, quase como um golpe físico. Por um momento, ele teve que recorrer a todo o seu autodomínio para não empurrá-la para o chão e possuí-Ia ali mesmo. Mas sabia que teria todo o tempo do mundo para fazê-Ia sua e mostrar-lhe quem é que dava as ordens naqueles dias. O orgulho ferido não o impediu de sorrir, complacente. Encolhendo os ombros, soltou-a.
Perdoe-me. Não obstante, se me permite um conselho, precisa se adaptar aos novos costumes de nossa pátria.
Adrienne abriu a boca para protestar. Lembrou-se então da mulher e da criança refugiadas no quarto secreto. Preferiu se calar. E, ainda que dominada pela repulsa, não se moveu.
O que quer de mim?  perguntou sem rodeios.
Será que não é capaz de adivinhar?
O tom sugestivo dele deixou-a aterrada. Adrienne sorriu friamente para disfarçar seu mal-estar.
Não. Não sou versada nas artes da adivinhação.
Quero que seja minha  Fabien respondeu, trêmulo de raiva e de excitação.  Sempre a desejei. E hoje haverei de possuí-la!
Ele tentou atraí-Ia para si. Adrienne desvencilhou-se a tempo.
Minha opinião nesse assunto não conta? Ou os direitos proclamados pela Revolução só valem para os homens?
Deixe a Revolução fora disso, Adrienne! Esse assunto diz respeito apenas a nós dois!
Fabien estendeu os braços para ela.
Não! -Adrienne gritou, com pânico crescente.
Ela lembrou-se da faca que amarrara ao tornozelo e, por um instante, experimentou uma onda de alívio. Entretanto, foi um alívio passageiro, pois sabia que, se usasse a faca, os cães de Fabien viriam em seu encalço para estraçalhá-la com os dentes afiados. Ela, Charlotte de Lambert e a criança estariam então perdidas.
Fabien agarrou-a pelos ombros e forçou.;a a olhar pela janela. Os cães continuavam a farejar a alameda defronte do castelo.
Onde estão eles? Sei que tem acobertado fugitivos! Acaso me toma por algum tolo?
Não sei aonde pretende chegar com essas acusações infundadas. Ademais, se tem tanta certeza de minha culpa, por que não me mandou para a prisão?  Adrienne revidou, tentando desesperadamente soar convincente.
Ah, minha cara...  A voz dele ficou macia, seu toque transformou-se em uma carícia velada.  Acredita realmente que desejo ver sua bela cabeça separada do corpo?
Agora a mão de Fabien deslizava para moldar a curva do seio de Adrienne. Nauseada, afastou a mão dele com um gesto rápido.
Não sei do que está falando! Não pode fazer acusações se não tem provas!
Provas? E quem precisa de provas, minha querida? O tribunal revolucionário não hesitará em condená-la. Será minha palavra contra a sua.
Meu irmão, Charles, talvez tenha algo a declarar a esse respeito  ela blefou.
Fabien limitou-se a rir. Girou o anel de ouro no dedo, mas seus olhos continuavam cravados nela.
Seu irmão tem outras prioridades por ora.
O que... o que quer dizer?
Bem, ao que tudo indica, Charles perdeu as boas graças do cidadão Robespierre. Parece que se apropriou de um dinheiro que não lhe pertencia. Vale ressaltar que o incorruptível Robespierre ficou muito grato pela informação.
Adrienne vacilou. Desprezava Charles por ter se vendido aos ideais da Revolução para salvar o próprio pescoço, mas, a despeito de tudo, ele ainda era seu irmão.
Seu sujo! Como se atreveu a difamar Charles?  exclamou, incapaz de se conter. Agitou o punho, tomada de cólera.
Não seja impulsiva, chérie. Pode fazer algo de que acabará se arrependendo mais tarde.  Fabien sorriu, inabalável.
Seus olhos brilhavam frios
Se souber se comportar, talvez eu até interceda por seu irmão hipócrita.
A mão de Adrienne ficou paralisada no ar. Por fim, ela baixou o braço devagar, percebendo as implicações das palavras de Fabien.
Ora, ora, parece que finalmente resolveu dar ouvidos à razão. Ótimo. Por outro lado, eu até que teria gostado que me oferecesse alguma resistência. Seria, por assim dizer... mais estimulante...
Com um olhar que mesclava triunfo e volúpia, ele debruçou-se no peitoril da janela e chamou seu criado:
Jacquot! Quero que deixe meu cavalo aqui e volte para a cidade. Leve os cães consigo.
O outro sorriu maliciosamente, entremostrando uma fileira de dentes cariados.
Como queira, senhor  aquiesceu. Acenou e afastou-se, desaparecendo na curva do caminho.
Os olhos fixos no retângulo da janela, Adrienne mal notou quando Fabien voltou-se para ela. Absorta, fixava um ponto inexistente enquanto o sorriso infame do criado ainda lhe assombrava a memória.
Não! Não se submeteria aos caprichos do detestável Fabien! Defenderia sua honra até o fim... A faca! Sim, usaria a faca! Depois pensaria em um plano para fugir dali.
Venha, Adrienne. Passei esses anos todos imaginando como seria possuí-Ia em sua cama de donzela. Mal posso esperar para concretizar minhas fantasias...
Ele deu um passo à frente. Acariciou-lhe o colo alvo com a ponta dos dedos. Ela ficou transida de terror. De náusea. Precisava de tempo. Precisava de mais alguns minutos, até que Jacquot estivesse a uma distância segura do castelo. Fechou os olhos e se retraiu. Murmurou:
Dê-me um pouco de tempo. Por favor.
Ah, que decepção, chérie! Não pensei que fosse tão tímida.
Ele a empurrou para o divã e pôs-se a andar de um lado para outro. Sua impaciêl:'cia era visível.
Adrienne respirou fundo. Com as pálpebras cerradas, concentrava-se nos sons lá fora. Ao per.ceber o ruído áspero das rodas da carruagem no cascalho da alameda, retesou-se cheia de antecipação. Os minutos arrastavam-se. Ela entreabriu os olhos e apanhou a faca com todo cuidado, escondendo-a nas dobras do vestido. Só então se levantou. No íntimo, repetia a si mesma que encontraria coragem para se defender.
Fabien imobilizou-se tão logo a viu de pé.
Adrienne, quase sem fôlego, esperou que ele se aproximasse. E cada passo de Fabien equivalia a uma reiterada ameaça. Ele fez menção de abraçá-la. Adrienne repeliu-o com a mão livre.
Não! Não me toque!
Não me provoque, meu anjo.
Ele falava tão baixo que Adrienne mal chegou a ouvi-lo.
Seu coração batia descompassado, como o rufar de mil tambores.
Fabien estendeu-lhe a mão.
Venha cá.
Ela fez sinal negativo.
Fabien avançou mais um passo. Um longo momento transcorreu. A tensão no ar era quase palpável. Súbito, sem aviso, ele agarrou o corpete do vestido de Adrienne. O tecido cedeu ante a violência de seu gesto.
O ruído do vestido se rasgando foi como uma explosão aos ouvidos dela. Sem refletir, Adrienne empunhou a faca e investiu contra Fabien. No último instante, sua mão fraquejou e em vez de atingi-lo no ventre, a faca resvalou-lhe a cintura.
Ela ignorou os urros de dor e de ódio dele. Correu como louca, enquanto os pensamentos cruzavam-se e entrecruzavam se em sua mente. O gabinete! Tinha que chegar ao gabinete! Em sua fuga, derrubou um vaso e colidiu com o batente de uma das portas. Não se deteve. Estava cega de desespero.
Quando afinal encerrou-se no gabinete, estava arquejante e tinha a fronte banhada de suor gelado. Recostou à porta por um momento. Imagens desencontradas desfilavam a sua frente. Precipitou-se para o retrato que guardava a entrada secreta. Porém, antes de tocar o quadro, ocorreu-lhe uma idéia tardia. Girou sobre os calcanhares e correu para uma porta envidraçada. Se a deixasse aberta, talvez conseguisse ludibriar o
Fabien. Com mãos trêmulas, lutou "em vão com o trinco emperrado. Num assomo de frustração, socou a porta. Sua mão varou 00 vidro. Estilhaços tilintaram no chão. Adrienne viu o sangue manchando-lhe os dedos e o dorso da mão. Mas seu pânico era mais forte, e não sentiu nenhuma dor. Tornou a golpear a porta, que dessa vez se escancarou.
Ela então virou-se mais que depressa e foi postar-se diante do retrato. Apalpou a tela freneticamente. Nisso, ouviu os passos de Fabien na biblioteca. Imobilizou-se num sobressalto. Procurando acalmar-se, voltou a palmilhar a tela do quadro. Um grito ecoou atrás dela, seguido de um estrondo. Adrienne virou a cabeça e constatou que a porta do gabinete estava sendo forçada a machadadas. Seu coração falhou. uma batida.
Tateou o retrato com gestos cada vez mais nervosos. Sabia que precisava ser meticulosa para encontrar o mecanismo que revelava a entrada secreta. Contudo, suas mãos moviam-se à sua revelia, os dedos pressionando a tela a esmo.
Houve um baque surdo às suas costas. Adrienne fixou o retrato.
Ajude-me, Isabella! Ajude-me!  rogou silenciosamente, ainda que soubesse a inutilidade de tal apelo.
De repente, pareceu-lhe estar sendo arremessada em um vácuo. Mergulhou no silêncio e na escuridão. Quis se debater, mas estava paralisada. Quis gritar, mas nenhum som saiu de seus lábios. O pânico asfixiou-a. Ela fechou os olhos, certa o de que iria morrer. Aos poucos, contudo, sua respiração se normalizou. Descerrou as pálpebras e deparou-se com um quadro que nunca vira antes: diante dela, uma Vênus sensual dançava com o deus Marte.
Receosa de esboçar qualquer movimento que fosse, Adrienne olhou em torno de si. Divisou colunas entalhadas e cortinas de veludo azul com cordões dourados. Só então percebeu que jazia sobre um leito. O voluptuoso quadro ornava o dos seI.
Ela sentou-se. Foi quando teve nova surpresa: em lugar do vestido rasgado, usava uma camisola finíssima de linho branco e um robe enfeitado com brocados vermelhos e púrpura. Atônita, quedou-se admirando aqueles trajes suntuosos. Depois seu olhar vagou pelo cômodo. Mais de uma vez, Adrienne pensou que estivesse delirando. Que outra explicação haveria para as alucinações que lhe turvavam os sentidos? Fechava então os olhos, mas, quando os reabria, via-se sempre no mesmo lugar: um quarto ricamente mobiliado com móveis escuros e paredes cobertas de tapeçarias, veludos e brocados.
Ela afastou a colcha. púrpura e se levantou. Apoiou-se a uma das colunas do dossel, sem se fiar nas próprias pernas, e esperou um momento. Por fim, começou a circular pelo quarto. A um canto, encontrou uma mesa posta, repleta de jarros de vinho, carnes e frutas. Franziu o cenho, intrigada. Aquela mesa parecia destinada a um farto banquete.
Mais adiante, havia uma mesa oval e, sobre ela, um baú aberto de onde escapavam cintilações de toda cor. Hesitante, Adrienne revolveu o conteúdo do pequeno cofre: em seus dedos enroscaram-se correntes de ouro, na palma de sua mão reluziram gemas raras. Safiras, esmeraldas, rubis, pérolas. Ela olhou fascinada para aquele inesperado tesouro. A seguir, ergueu o rosto para o quadro que encimava a mesa. Os matizes ali eram tão nítidos, que não resistiu à tentação de tocar o quadro. Foi então que percebeu tratar-se de um espelho. Não acreditou nos próprios olhos. Inclinou a cabeça, e a superfície polida devolveu-lhe °a imagem de uma mulher fazendo um silêncio. Sua incredulidade deu lugar ao pânico. Adrienne curvou-se e tocou novamente o espelho. Traçou, com a ponta dos dedos, o estranho semblante ali refletido. Em vez do rosto anguloso que esperara ver, deparou com um rosto de feições clássicas e delicadas. Em vez da cabeleira castanha e encaracolada, vislumbrou uma cascata de cabelos loiros que lhe desciam até a cintura como fios de puro ouro.
Ela reconheceu a imagem refletida no espelho. Paralisada, continuou a olhá-Ia. Um minuto se passou. Depois outro. E , chegou o momento em que não mais pôde negar o assombroso fato de que, por alguma reviravolta do destino, ela, Adrienne, de Beaufort, havia se encarnado no corpo de sua ancestral Isabella di Montefiore.

As Duas Vidas de Adrienne Onde histórias criam vida. Descubra agora