Capitulo Seis

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Houve o murmúrio de vozes quando Adrienne mexeu no leito. Meio acordada, meio dormindo, ela se espreguiçou, sentiu os músculos doloridos e resolveu dormir mais um pouco. Virou-se para o lado e escondeu o rosto no travesseiro.
Tivera um sonho muito estranho. Estranho e maravilhoso. Enquanto flutuava entre a fronteira do sono e da vigília, recordou-o em cada detalhe. Parecia um conto de fadas oriental. E fora tão intenso que seu corpo ainda guardava a lembrança dele.
Diga a dom Piero que compareceremos.
Adrienne ouviu a voz, mas não compreendeu as palavras. Estaria ainda sonhando? Novamente, recordou cada detalhe de seu sonho, tão rico em imagens e sensações. Quando voltou a se espreguiçar, sentiu o corpo fatigado. Sorriu. Tinha até impressão de haver vivido aquele sonho...
Acorde, Isabella. Do contrário, nós nos atrasaremos.
O último pensamento de Adrienne foi simultâneo ao som daquela voz. No mesmo instante, ela compreendeu o que lhe acontecera e despertou completamente. Não fora um sonho. Tinha, com efeito, caído nas malhas de uma trama sobrenatural.
Uma onda de pânico tomou conta dela. Por alguns segundos, foi incapaz de respirar. Onde estava? Quem, afinal, era ela? Estava desorientada, como uma marionete cujas cordas fossem puxadas em diferentes direções.
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Mas, mal o pânico surgira, e já dava lugar a lembranças doces, quentes, das últimas horas que passara ali.
Sandro havia feito amor com ela muitas e muitas vezes, até que ficasse embriagada com a presença, o toque, o gosto dele. Até que seu corpo alcançasse os limites do prazer. Sandro lhe mostrara quanto a queria, por meio de palavras e de gestos. Levara à sua boca amêndoas doces e aninhara-a em seu peito com uma delicadeza que contradizia seus perigosos olhos negros.
O coração de Adrienne bateu mais forte. Ela pressionou a mão sobre o seio esquerdo, como se com isso pudesse acalmá-lo. A quem pertencia aquele coração? A Adrienne? A Isabella? A quem pertenceria a alma atormentada que habitava aquele corpo? Será que o terrível destino de Isabella agora era o destino de Adrienne? Ou acaso ela seria capaz de construir um novo destino para si? Aferrou-se a esse último pensamento, experimentando uma sensação de liberdade. Sim, decidiu. Seria Isabella di Montefiore, pois essa fora sua escolha. Mas seguiria os ditames de seu próprio coração.
Acorde, madonna. Chamei suas quatro aias. Elas aguardam sua permissão para entrar no aposento.
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Adrienne afastou o travesseiro do rosto e abriu os olhos. Sandro estava diante dela, as mãos nos quadris. Vestia um robe cor-de-vinho, com ricos bordados que conferiam a sua pele uma coloração de ouro envelhecido. Adrienne teve vontade de abraçá-lo. Porém, flagrou no rosto dele, na maneira como franzia de leve as sobrancelhas, uma vaga contrariedade. Os olhos negros a fitavam com frieza e distanciamento.
Há algo errado?  Adrienne perguntou, sentando-se e
escondendo sua nudez com a colcha.
Chegaremos atrasados ao banquete. Já recebi duas men
sagens, uma de meu pai e outra de seus irmãos, para confirmar
nossa presença.  Alessandro teve raiva de si mesmo por
usar um tom tão formal com ela. Um pouco confuso, repetiu:
Chegaremos atrasados.
Não me parece o tipo de homem que se importa de
chegar atrasado a um banquete. Por que não me acordou antes?
Ela sorriu, aliviada. Ele encolheu os ombros.
Porque estava muito fatigada.
Continua zangado, não é?  Ela suspirou. Indicou o
espaço vazio a seu lado.  Importa-se de sentar-se um pouco?
Alessandro não queria se sentar no leito que ainda guardava o cheiro dele, dela, de seus jogos amorosos. Não queria ficar perto de Isabella e sucumbir à tentação de tocá-la. No entanto, fiando-se em sua autodisciplina, avançou até a cama e sentou-se.
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Se tudo o que se permite sentir por mim é cólera e
desejo, eu duvido que possamos ter êxito em nosso casamento,
Sandro. E eu quero muito que nosso casamento dê certo.
Nós não escolhemos um ao outro, madonna. O êxito de
nosso matrimónio será comprovado tão-somente pelo número
de filhos que me der.
O tom dele era mordaz, e Adrienne retraiu-se como se tivesse levado uma bofetada. Aquele não podia ser o mesmo homem que a amara com tanta entrega. Como seria capaz de assumir a postura de um desconhecido, de olhos opacos e frios, quando ainda na véspera a fitara com paixão, ternura até? A desconfiança de Alessandro a magoava profundamente. Afinal, abrira mão de sua antiga vida só para saivá-lo. Em troca, tudo o que recebia era menosprezo. Mortificada, Adrienne baixou o rosto.
Mas Alessandro tinha razões fortes para suspeitar de Isabella. Mais do que sequer imaginava. Além disso, nunca poderia adivinhar do que ela, Adrienne, abdicara em prol de sua segurança. Talvez, exatamente por estar ciente de sua impotência, ela sentiu raiva. Acalentou esse sentimento, esperançosa de que fosse ajudá-la no difícil teste que tinha pela frente.
Alessandro odiava a tristeza que havia no semblante dela. Sim, tentara provocá-la, inclusive feri-la, mas esperara que Isabella fosse reagir à altura, como no dia em que reaparecera no quarto após seu sumiço misterioso; como na noite em que se entregara a ele, num embate de paixões.
Ele estendeu a mão para tocá-la. Adrienne virou-se bruscamente e encarou-o. Em seus olhos castanhos brilhou a chama da indignação.
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Até que ponto me conhece, Sandro?
Sua pergunta é despropositada. Sabe tão bem quanto eu
que, antes de nosso casamento, só nos havíamos visto a dis
tância. Se nossa união não fosse do interesse do papa Alexan
dre, os Pulcinelli ainda estariam espreitando nos becos escuros,
na tentativa de cortar a garganta de qualquer um ligado à família
Montefiore.
Alessandro ergueu o queixo com desdém. Percebendo o olhar inflamado da esposa, segurou-a pelo pulso e acrescentou:
Ainda não estou nem um pouco convencido de que de
sistiram de espreitar nos becos da cidade. Ou será que já contrataram bravi para levar adiante sua vingança?
Adrienne tentou se desvencilhar. Ele apertou-lhe o pulso com força.
Não creio que será um sucessor à altura de seu pai.
Decerto fracassará se continuar julgando a tudo e a todos com
tamanha intolerância  ela retorquiu.
Sugiro que pare de fazer sermões, madonna.
E eu sugiro que pare de me machucar, messere.
Por um momento, Adrienne foi tomada pelo rancor. Horrorizada, procurou se refazer £ raciocinar. Por Deus, seria aquele o mesmo ódio que Isabella sentira? Ela teve um calafrio ante o pensamento de que estava se enredando perigosamente naquela jornada sobrenatural. Tinha medo, muito medo, de que a alma da ancestral a dominasse paulatinamente, com toda a sua mesquinhez, crueldade e traição. Acaso renunciara à antiga vida que levava apenas para se transformar na mulher pérfida e vingativa que Isabella um dia fora?
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O olhar de cólera que Adrienne dirigiu a Alessandro fez com que ele cedesse. Curvou-se para beijar-lhe a carne machucada e, assim, não percebeu o horror que se estampava no semblante dela. Enquanto roçava os lábios na pele macia, pressentiu que seu desejo, apesar de saciado nos desatinos da véspera, voltava à tona.
Atrás de si, ouviu a porta se abrir. Aprumou-se e encarou Adrienne.
Estou quase dispensando suas aias e mandando às favas
o banquete, meu pai e seus irmãos  murmurou.
Não havia nada que eia desejasse mais no momento. Ficar ali, naquele quarto perfumado, e deixar que o calor da paixão varresse suas dúvidas para longe. Entretanto, ainda precisava descobrir muitas coisas. Sorriu para Alessandro, afagando-lhe a face.
Mesmo sob o risco de ser acusada de fazer mais um
sermão, gostaria de frisar que um certo estoicismo faria bem
à sua alma imortal. Seu confessor haveria de concordar com
meu ponto de vista.  Adrienne semicerrou as pálpebras de
um modo involuntariamente sedutor.  E seu comportamento
recente não primou exatamente pelo estoicismo, não é?
Feiticeira... Acertaremos nossas contas mais tarde.
Ele beijou-lhe o pulso uma última vez, mantendo os olhos presos aos dela. Antes que mudasse de ideia, girou sobre os calcanhares e saiu do quarto, passando pelas damas de companhia de Isabella.
Adrienne seguiu-o com o olhar até Alessandro desaparecer pelo corredor. Só então se voltou para as quatro mulheres que se enfileiravam com ar respeitoso à porta do quarto. Mesmo com os braços carregados de tecidos e roupas, fizeram-lhe uma profunda reverência e acercaram-se da cama.
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A medida que se aproximavam, Adrienne viu seus rostos com maior clareza. Mais que depressa baixou a cabeça para disfarçar seu horror. Pois se as conhecia! Ela, que nunca vira aquelas mulheres antes, sabia o nome de cada uma delas. Angela. Lucrécia. Renata.
A terrível impressão de que se fragmentava em mil parte tomou conta de Adrienne. Quem era ela afinal? Quando se vira naquele quarto pela primeira vez, reconhecera muitos dos presentes graças às descrições que havia lido nos diários de Isabella. Piero, Alfonso, Luísa, o anão Gianni. Reconhecera todos eles por dedução. Mas aquelas mulheres... ela simplesmente as conhecia. Algo havia mudado drasticamente em sua percepção. O quê?
Fechou os olhos, aturdida. Precisava de um momento para serenar e se adaptar à nova mudança que se operara nela. Contudo, não foram imagens serenas que lhe ocorreram. Em vez disso, viu Sandro deflorando-a, com os olhos esgazeados de desejo e um sorriso triunfante brincando em seus lábios...
Sim, aí estava a resposta para sua pergunta, Adrienne pensou. Depois daquele encontro, ela havia mudado. Era como se sua união com Alessandro tivesse um caráter místico. Dessa união, ela emergira metamorfoseada na verdadeira Isabella, tal uma borboleta que abandona o casulo. O lampejo de ódio que sentira por Alessandro minutos antes voltou para assombrá-la. Lutou com todas as forças para dominá-lo, determinada a não se deixar contaminar pelo fantasma de Isabella. Seguiria os ditames de seu coração, repetiu a si mesma, como numa prece.
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Respirando fundo, Adrienne levantou o rosto e encarou as recém-chegadas. Por trás das três damas de companhia, adiantou-se uma mulher alta carregando uma grande tina de água. Vestia-se com muito mais simplicidade que as outras, usando uma túnica desbotada presa à cintura por um cordão. Seus cabelos loiros estavam trançados e enrolados no alto da cabeça e, ao contrário das demais mulheres, ela não ostentava nenhum adorno. Aproximou-se do dossel e, conservando os olhos baixos, ajoelhou-se.
Posso banhá-la agora, madonnal  perguntou, revelando um carregado sotaque estrangeiro.
Adrienne olhou-a. Seu coração falhou uma batida. Sabia que o pai de Isabella lhe dera aquela mulher havia cinco anos, por ocasião de seu décimo terceiro aniversário. Tratava-se de unia escrava que fora capturada na Rússia. Daria. Sim, chamava-se Daria. Adrienne ficou intrigada. De onde viera aquele nome? Isabella sempre se referira a ela como Bárbara. Mas, por algum motivo inexplicável, o nome Daria não saía da cabeça de Adrienne. Esse seria outro quebra-cabeça que teria de solucionar mais tarde.
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Ela deslizou para fora da cama e ficou de pé diante da escrava.
Terá que ser rápida...  Adrienne hesitou por um se
gundo, sem saber como chamá-la, e acabou decidindo seguir
seus instintos.  Daria. Dom Alessandro quis me poupar e
só me acordou há poucos minutos.
A escrava levantou o rosto para encará-la. Em seus olhos azuis lia-se surpresa, rancor, medo. Mas logo ela tornou a baixar o rosto.
Cada vez mais confusa, Adrienne virou-se para as outras mulheres.
Deixem as roupas aqui. Depois podem sair. Eu as cha
marei se precisar de seus serviços.
As três se entreolharam discretamente, fizeram uma mesura e se retiraram.
Daria lavou-a com água morna e perfumada. Esfregava-lhe o corpo com vigor e agilidade. Adrienne estranhou o fato de não sentir nenhum embaraço por se deixar banhar como se fosse uma criança. Acaso perdera todo o pudor?
Quando Daria terminou a aplicação de óleo de rosas em seu corpo, acocorou-se e perguntou-lhe:
Devo chamar as outras, madonnal
Adrienne logo percebeu que a verdadeira Isabella teria preferido dispor de muitas serviçais a fim de melhor desfrutar o gosto do poder. Ficou aliviada ao constatar que, afinal, continuava sendo radicalmente diferente de sua ancestral. Sorriu, não cabendo em si de alegria. E sentiu um elo de solidariedade para com aquela mulher que fora roubada de seu lar, assim como ela própria fora sequestrada de seu tempo.
Não, Daria. A menos que não seja capaz de me ajudar
sozinha.
Como queira, madonna.
A escrava vestiu-a rapidamente. As roupas de baixo, confeccionadas em linho, eram quase transparentes de tão finas. As anáguas eram de seda verde. O vestido, de brocado branco, pesado, coberto com minúsculas flores bordadas com fios de ouro e guarnecidas com safiras e rubis. Um cinto de pérolas brancas e rosadas completava o traje.
Depois Adrienne foi sentar-se diante do espelho. Ficou olhando Daria penteá-la e só então percebeu quanto seus cabelos haviam ficado embaraçados após as horas de amor que passara com Alessandro. A escrava tentou passar o pente cravejado com todo cuidado, mas, mesmo assim, ele acabou escapando de suas mãos. Os dentes arranharam o ombro de Adrienne, que deixou escapar uma exclamação de susto. Ao olhar novamente para o espelho, viu Daria se ajoelhar e oferecer-lhe o rosto com expressão resignada.
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Adrienne ficou com as faces abrasadas de constrangimento quando notou que a escrava esperava ser punida com um golpe rude. Inclinou-se um pouco e examinou-lhe as feições. Numa de suas faces divisou uma cicatriz branca. E teve certeza de que a ancestral fora a responsável por aquela marca. Quantas crueldades mais a outra Isabella teria cometido, crueldades que agora cabia a ela reparar? Adrienne inconscientemente vergou os ombros, oprimida pela gigantesca façanha que ainda teria que levar a termo.
Daria fez-lhe um penteado simples, uma trança frouxa enfeitada com cordões de pérolas. Ao redor de seu pescoço, pendurou um colar de pérolas com uma safira em forma de gota. Por fim, foi apanhar um porta-jóias de veludo para que escolhesse os anéis que desejava usar.
Adrienne jamais vira tal profusão de ouro e pedras cintilantes. Hesitou um pouco e escolheu os dois anéis mais simples que encontrou. Daria endereçou-lhe um olhar sugestivo e fugaz, e Adrienne se deu conta de que, mais uma vez, havia falhado ao tentar desempenhar seu papel.
A porta do aposento se abriu. Ela viu a imagem de Sandro refletida no espelho. A temperatura no quarto pareceu subitamente subir. Adrienne sentiu o sangue correndo rápido em suas veias. Sua pulsação se acelerou. Estava feliz de rever Alessandro. Quase cedeu ao impulso de se precipitar para os braços dele. Em vez disso, cruzou as mãos sobre o regaço e esperou que se aproximasse.
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Adrienne ficou com as faces abrasadas de constrangimento quando notou que a escrava esperava ser punida com um golpe rude. Inclinou-se um pouco e examinou-lhe as feições. Numa de suas faces divisou uma cicatriz branca. E teve certeza de que a ancestral fora a responsável por aquela marca. Quantas crueldades mais a outra Isabella teria cometido, crueldades que agora cabia a ela reparar? Adrienne inconscientemente vergou os ombros, oprimida pela gigantesca façanha que ainda teria que levar a termo.
Daria fez-lhe um penteado simples, uma trança frouxa enfeitada com cordões de pérolas. Ao redor de seu pescoço, pendurou um colar de pérolas com uma safira em forma de gota. Por fim, foi apanhar um porta-jóias de veludo para que escolhesse os anéis que desejava usar.
Adrienne jamais vira tal profusão de ouro e pedras cintilantes. Hesitou um pouco e escolheu os dois anéis mais simples que encontrou. Daria endereçou-lhe um olhar sugestivo e fugaz, e Adrienne se deu conta de que, mais uma vez, havia falhado ao tentar desempenhar seu papel.
A porta do aposento se abriu. Ela viu a imagem de Sandro refletida no espelho. A temperatura no quarto pareceu subitamente subir. Adrienne sentiu o sangue correndo rápido em suas veias. Sua pulsação se acelerou. Estava feliz de rever Alessandro. Quase cedeu ao impulso de se precipitar para os braços dele. Em vez disso, cruzou as mãos sobre o regaço e esperou que se aproximasse.
A poucos passos dela, Alessandro se deteve.
Onde estão as outras camareiras, madonncft
Ela virou-se no banco e fitou-o.
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Dispensei-as.
Então preparou-se para o banquete com o auxílio de
apenas uma criada?
Em resposta, Adrienne ergueu o braço.
Dê-me sua mão, dom Alessandro, e ajude-me a levantar.
Ele ficou admirado com o tom imperioso da esposa. Postou-se diante dela. Adrienne aceitou a mão que Alessandro lhe estendia e se levantou. Quando ele fez menção de soltá-la, não deixou.
Há alguma falha mais que queira apontar, meu esposo?
perguntou com suavidade.
Alessandro aspirou o suave perfume que se desprendia do corpo dela e sentiu um vago torpor. De novo, aquele desejo insaciável voltava a atormentá-lo. Mesmo assim, não resistiu e recuou um passo para contemplar Adrienne.
Um homem dificilmente encontraria defeitos em Isabella,
La bella  observou, forçando um tom irónico para dissimular quanto a beleza dela o perturbava.
Mais uma vez, tentou retirar a mão que ela apertava na sua. Mais uma vez, Adrienne não permitiu que se afastasse. Por seu turno, mediu-o de alto a baixo e sorriu com aprovação.
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Alessandro usava brocados dourados com toques de escarlate. Desprezando os sapatos de veludo que eram a última moda na corte, calçara botas de cano longo. Adrienne relanceou a adaga de cabo incrustado que pendia à sua cintura e, para mostrar-lhe que ainda se lembrava do que ocorrera na noite de núpcias, tocou de leve o pulso enfaixado dele. Aí, por fim, soltou-lhe a mão.
Agora percebo que Luísa estava certa  sussurrou.
Por quê?  Alessandro indagou, estremecendo ante a
intensidade do olhar dela.
É o homem mais belo de Siena.
Adrienne acariciou-lhe a face. Deixou as mãos deslizarem pelos ombros largos e reteve nos dedos uma mecha de cabelos negros.
Quem é na realidade, Isabella?  ele inquiriu com voz ríspida. Cerrou os punhos para resistir ao impulso de torná-la nos braços.  Consegue ser sedutora em um momento e ino
cente no instante seguinte. Autoritária senhora e rapariga acanhada. Quantas mulheres existem por trás de seu rosto?
Adrienne correu os dedos pelos cabelos de Alessandro.
Pelo menos, uma a mais do que imagina, Sandro.
Assim dizendo, ela sorriu de modo sonhador e distante.
Alessandro quis pedir-lhe uma explicação para aquela resposta enigmática, porém, teve que se render às batidas imperiosas que vinham da porta. Ofereceu o braço a Adrienne e, juntos, os dois saíram do aposento.
Quanto mais se aproximavam do salão, mais crescia a apreensão de Adrienne. Ao se acercarem das portas fechadas, a música abafada, entremeada de vozes e gargalhadas, pareceu-lhe uma onda ameaçadora. O coração dela disparou. Cada músculo de seu corpo se retesou, até que se sentisse incapaz de dar mais um passo sequer.
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Até ali, havia logrado desempenhar seu papel de maneira relativamente convincente. Agora, porém, estava prestes a se defrontar com pessoas que conheciam Isabella, e conhecia muito bem. A seus olhos, ela decerto pareceria Isabella. o que aconteceria se não conseguisse se comportar come bella? Não sabia quanto tempo resistiria sem despertar peitas. Quanto tempo levaria para que gente como Lu seus irmãos desconfiassem de que lidavam com uma impôs O que seria dela se a desmascarassem? Poderia ser encei na prisão. Decapitada. Queimada na fogueira sob a açus de praticar bruxaria. E Sandro? Poderia, tentaria proteg Para dissimular o calafrio que lhe sacudiu o corpo, Adri torceu o corpo bruscamente. Mas não teve meios de disf o tremor de sua mão, que estava pousada no braço de t sandro.
Imerso em pensamentos, ele caminhava em absoluto s cio. Por mais que lutasse contra os próprios sentimente não podia negar que estava sucumbindo ao sortilégio de bella. Daquela mulher de mil faces, cada qual mais encanta que a outra. Havia nela, porém, algo que destoava hon mente e que Alessandro não chegava a identificar. Isa parecia um mosaico onde faltava uma peça essencial, qu teraria todo o aspecto do conjunto.
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Onde estaria a chave do enigma?, perguntou a si me Na mulher que o esperara no aposento nupcial? Naquela mi que revelara doçura, paixão e coragem? Ou na mulher ricamente ataviada, ficara a seu lado durante a cerimôni casamento? Na mulher que o olhara com ódio latente, falsidade e deliberação? Era como se Isabella fosse duas lheres em uma só.
Ele sentiu-a estremecer e fitou-a. Isabella caminhava as costas eretas e o passo firme, mas, não obstante sua apai calma, Alessandro pressentiu quanto estava agitada. Pers tou-a e notou que, na verdade, estava completamente aten lutando para não deixar transparecer seu pavor.
Uma emoção desconhecida insinuou-se no coração de / sandro. Uma emoção que ele preferiu ignorar. Aquela e mesma Isabella que vira na noite de núpcias. A única coisa que tinha em comum com a outra Isabella era o orgulho. E seria para seu orgulho que ele apelaria, pois somente o orgulho lhe daria forças agora.
Adrienne teve ímpetos de se virar e fugir dali. Encarou Alessandro e seus olhares se encontraram. Ele nada disse, limitando-se a arquear as sobrancelhas, sorrindo de forma provocativa, desafiadora.
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Automaticamente, Adrienne ergueu o queixo e sentiu-se mais calma. Suas mãos pararam de tremer. Ainda que a expressão de desafio de Alessandro a contrariasse, ficou agradecida. Intuiu que aquela fora a única maneira que ele encontrara de lhe dar apoio em um momento de fraqueza. Logo a seguir Adrienne rejeitou essa ideia, pois então ficaria implícito que seu marido sentia algo mais do que mera paixão por ela. Que o desprezo que antes lhe devotara já não existia. Não, estava enganada, Adrienne ponderou, sem sonhar com o poder que agora tinha sobre Alessandro.
Prometeu a si mesma que ainda provaria a ele que merecia mais do que reles desejo por seu corpo e menosprezo por sua alma.
As grandes portas abriram-se para deixá-los passar. Os arautos com uniformes brancos e azuis, as cores da família Mon-tefiore, anunciaram sua chegada com um breve toque de cornetas. Quando Adrienne e Alessandro adentraram ò recinto, a música cessou e as vozes se calaram. Em silêncio, os dois cruzaram o salão, seus passos ecoando no piso de mármore branco e negro, e avançaram até o tablado onde Francesco di Montefiore, duque de Siena, os aguardava.

As Duas Vidas de Adrienne Onde histórias criam vida. Descubra agora