Capitulo Doze

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E os dias passaram tranqüilos, harmonizando-se com a bucólica paisagem que cercava Costalpino. Os milharais, os campos de trigo, as vinhas, os bosques de ciprestes, as colinas ondulantes que abrigavam aqui e ali casas com teto de telhas vermelhas, tudo naquele cenário sugeria paz e serenidade. '
, Embora fosse uma construção ampla, a vi/la parecia intimista se comparada ao imenso palazzo que os Montefiore possuíam em Siena. Os quartos eram acolhedores e ostentavam nas paredes tapeçarias multicores e brocados cor-de-marfim sobre fundo de veludo vinho.
Mas a verdadeira paixão de Adrienne eram os jardins que circundavam a construção. Havia um agradável jardim com seu labirinto de alamedas ladeadas por ciprestes e canteiros floridos, em cujo centro destacava-se uma fonte presidida por estátuas de Netuno e de suas ninfas. Mais adiante, o terreno relvado descaía suavemente, pontilhado de velhos carvalhos, muito altos e com troncos nodosos.
Adrienne evitava só uma área daquele jardim: um aprazível recanto com um pequeno tanque de cisnes, orlado de colunatas romanas e bancos que convidavam ao doce ócio. Ali, naquela parte, Adrienne deparara-se com a escultura de um querubim montado em um golfinho. A mesma escultura que se acostumara a ver desde a sua infância no jardim do Castelo de Beaufort.
Na primeira e única vez em que a vira ali, ela estivera passeando com Alessandro. Sentira um frio no estômago e quase desfalecera. Alessandro, mais que depressa, levara-a até um banco próxima e fizera com que se sentasse. Ela justificara seu súbito mal-estar dizendo que se tratava de uma conseqüência da gravidez. Tivera, porém, o cuidado de nunca mais retomar àquele recanto. Não suportava pensar que era apenas uma visitante temporária naquele tempo e que, de um momento para outro, poderia voltar para sua época. '
Ela correu os dedos pela balaustrada de mármore que cercava o jardim e ficou olhando para a estrada. Sabia que a qualquer minuto avistaria a nuvem de poeira que assinalaria o retomo de Sandro.
Sim, pensou, estava vivendo dias de tranqüilidade. E as noites... Adrienne fechou os olhos. As noites eram cheias de paixão e ternura. Mais e mais, o elo entre ela e Sandro se fortalecia. Não obstante, havia sempre uma fina linha de tensão a separá-los, como as nuvens agourentas que se concentram no horizonte distante em um dia de sol.
Adrienne não repetira sua declaração de amor nem Sandro encontrara meios de proferir as palavras que ela tanto queria ouvir. As palavras que, qual um talismã mágico, dissipariam as suspeitas que repousavam no coração de Alessandro. Às vezes Adrienne flagrava a dúvida em seu olhar. Nessas ocasiões, a mágoa vinha corroê-la como um veneno amargo.
Julho passara e viera o mês de agosto, trazendo a época das colheitas. A terra então ficara exposta, exibindo seus ricos matizes de marrom e cobre. Nas vinhas, as uvas começavam se estufar e a adquirir uma coloração purpúrea.
Adrienne sabia que o tempo de calmaria estava chegando ao fim. Como já previra, as últimas notícias do mundo exterior davam conta de que o rei da França já rumava para a Itália a fim de reclamar seus direitos sobre Milão. Dizia-se ainda, uma breve alusão, que César Borgia, filho ilegítimo do papa, acompanhava o soberano francês. Entretanto, ninguém associou esse fato à excomunhão dos representantes do papa que governavam as cidades de Forb e Imola, Pesaro, Cesena e Rimini, por ostensivamente falharem no pagamento dos impostos devidos ao papado. Mas Adrienne sabia o que estava por vir. E, a cada dia, sua apreensão aumentava.
Ela sabia que logo Borgia, sob pretexto de resgatar as cidades do papado, começaria a estabelecer seu próprio ducado na Itália Central. Sabia que ele contrataria os melhores comandantes mercenários do país, os condottieri, para ajudá-lo nessa empreitada. E que Sandro, com suas tropas bem-treinadas e artilharia moderna, seria um dos primeiros escolhidos. Por mais que Adrienne refletisse e passasse noites em claro, revirando-se no leito, não encontrava uma solução para impedir o curso inevitável dos fatos. .
Imersa em pensamentos, ela mirava o horizonte. Mas seus olhos não focalizavam os campos, e sim o futuro. Pois, se por um lado conhecia o futuro, por outro, o que estava por vir era uma incógnita. Desconhecia as implicações de seus atos naquele tempo que não era o seu. E o que sabia não era o bastante para lhe dar uma pista de como poderia mudar o terrível desfecho da vida de Alessandro.
Sem perceber, Adrienne crispou as mãos na balaustrada. Qual o propósito de trocar sua vida pela de Isabella, se não conseguisse alterar as linhas do destino? Mas não desistiria.
Não importava quantas noites ainda haveria de passar em claro. Encontraria uma solução.
Quando caiu em si, notou que a poeira baixava na estrada banhada de sol que conduzia à vilIa. Sandro retomara! O coração dela bateu mais rápido. Ergueu a saia e preparou-se para ir a seu encontro.
Ao virar-se, deparou ccom ele e, instintivamente, levou a mão ao peito num gesto de surpresa.
Sandro!
Seu pensamento devia estar muito longe.  Alessandro aproximou-se, tomou-lhe as mãos e beijou-a em ambas as faces.  Eu a chamei, mas não me ouviu.
Eu estava apenas... pensando...  Adrienne murmurou. Assim dizendo, recostou a cabeça no peito dele, mas Alessandro segurou-lhe o queixo e forçou-a a fitá-lo. Viu a inquietação nos olhos dela. Não lhe escapara, também, o modo como crispara as mãos na balaustrada de mármore. Antes que pudesse se impedir de duvidar, velhas suspeitas acordaram em seu íntimo.
Há algo errado, Isabella?
Não... Bem, sim. Eu não queria voltar para Siena  ela desconversou.
Então é isso que a aflige?
Alessandro suspirou, aliviado. Mesmo assim, um vestígio de dúvida persistiu em atormentá-lo.
Sorrindo, ele passou o braço pelos ombros de Adrienne e guiou-a pela alameda.
Não podemos ficar aqui para sempre. Ademais, depois de amanhã se realizará a segunda corrida do palio.
Ao mencionar o evento, os olhos dele brilharam de satisfação. As duas corridas, uma realizada no início de julho e a outra no dia seguinte à Festa da Assunção de Nossa Senhora, haviam sido o ponto alto da infância e adolescêncIa de Alessandro, como, de resto, haviam sido também para todos os outros meninos de Siena.
E, como se não bastasse, teremos que recepcionar um visitante ilustre  ele acrescentou.
Um visitante? Quem?  Adrienne perguntou, sentindo um calafrio a despeito do calor de agosto.
César Borgia.
O coração dela falhou uma batida.
Agora tudo se esclarece. Ao que tudo indica, o papa prepara uma campanha para reclamar as cidades para o papado.
E lhe dará uma condotta  Adrienne completou num murmúrio.
Sim. Está oferecendo quarenta e cinco mil ducados ao ano. E tenho certeza de que, se souber negociar com Borgia, conseguirei pelo menos mais cinco mil ducados. Afinal, ele sabe que minha artilharia é melhor que a de Vitelli.
-Não.
Alessandro parou de sorrir e franziu o cenho. Adrienne encarou-o com gravidade. Apertou-lhe o braço num gesto inconsciente de desespero.
_ Não aceite essa proposta! Oh, por Deus, prometa-me que não a aceitará!
Ela arregalou os olhos, com o desespero estampado no rosto.
Sem entender o que se passava, Alessandro sorriu-lhe de modo conciliador. Afagou-lhe as faces para tranqüilizá-la.
_ Isabella, tem noção do que está me pedindo?
_ Sim... não! _ Adrienne fez uma pausa, tentando ordenar as idéias. _ Pouco me importa! Se aceitar a oferta de César Borgia, correrá perigo, Sandro. Precisa ficar longe desse homem. Não se aproxime dele nunca! Compreende?
_ Isabella, meu tesouro, a guerra é a minha profissão.
Em meio à sua aflição, Adrienne mal notou a forma carinhosa como, pela primeira vez, Alessandro se dirigia a ela.
_ Pois então guerreie se for preciso. Mas não a serviço de Borgia. Ele é um homem perigoso, muito perigoso. Se aceitar sua oferta, poderá acabar pagando com a própria vida!
Alessandro riu. Acima de tudo, era um realista e valorizava o poder e a inteligência.
_ Ora, vamos, não me diga que dá crédito aos absurdos rumores sobre os Borgia. Não passam de mexericos maldosos inventados por gente que inveja sua habilidade e poder. Além disso, se acredita nos boatos que correm sobre eles, então são responsáveis por metade das mortes ocorridas na Itália. Isso, convenhamos, é um disparate.
_ Não ria, Sandro. Estou falando sério. Os Borgia são perversos.  Adrienne apertou-lhe ainda mais o braço.  César Borgia é um homem inescrupuloso e representará uma ameaça a quem quer que se aproxime dele.
Ouça-me, Isabella. César Borgia não é melhor nem pior que a maioria dos homens. Como pode querer que eu diga não ao filho do papa e recuse um dinheiro que representará uma boa parte da renda de Siena? Se eu desdenhar a oferta de Borgia, serei motivo de riso em toda a cidade!
Pouco se me dá, Sandro. A única coisa que desejo é que permaneça vivo. Entendeu bem? Quero que permaneça vivo!  Ela abraçou-o com força. Respirou fundo, procurando se acalmar. Ditadas por um sentimento de urgência, as palavras saíram de sua boca aos borbotões:  Escute, há outras formas de se levantar dinheiro. Podemos vender minhas jóias. Todas. E posso também conseguir dinheiro com meus irmãos. Minha família é muito rica e nosso banco empresta dinheiro para metade da Europa... Enfim, nós encontraremos uma solução. Eu sei que encontraremos. Por favor...
Alessandro encarou-a. Isabella falava a sério. Sua fisionomia estava congestionada de preocupação, seus olhos, marejados. Sua voz tremia ligeiramente, mas via-se que ela continuava em seu juízo perfeito.
Era evidente que os receios dela não tinham nenhum fundamento, Alessandro ponderou. Deviam ser fruto do estado em que ela se achava... E, no entanto, havia algo mais por trás daquilo. Perscrutou-a e, sem querer, lembrou-se de seu desaparecimento logo após as núpcias.
Adrienne estava ofegante, como se houvesse corrido muitas léguas. Ansiosa, esperou que ele lhe dissesse alguma coisa. Alessandro, porém, conservou-se quieto, ,os olhos negros brilhando insondáveis. Por fim, acariciou-lhe os cabelos e declarou:
Mesmo que eu guisesse, não poderia atender seu pedido.
Adrienne sentiu que o chão se abria a seus pés. Suas pernas fraquejaram. Recostou a cabeça no peito dele, completamente exaurida.
Sandro não acreditava nela, Adrienne concluiu com amargura. Dissera-lhe tudo o que podia, argumentara, implorar, mas Alessandro não lhe dera crédito.
Ela resistiu quando ele tentou levantar seu rosto. Mas Alessandro insistiu. Sentiu-se enternecido ao olhar para a esposa, em cujos olhos se lia uma tristeza infinita. Mesmo assim, nas profundezas de seu ser, permanecia a dúvida: aquele estranho apelo não seria parte de um plano dos Pu1cinelli para arruiná-lo?
A necessidade de reconfortar Isabella, porém, afugentou suas dúvidas.
Tudo vai acabar bem. Verá.
Adrienne assentiu com um meneio.
Poderei ao menos ficar em Costalpino para evitar maiores... complicações?
Alessandro fez um gesto negativo, sem compreender ou sem querer compreender as complicações a que ela se referia.
Isabella, agora é minha esposa. A esposa do herdeiro do ducado de Siena. Deve me acompanhar.
Ante o olhar resoluto dele, Adrienne percebeu que não lhe restava alternativa. Aquiesceu desconsolada, rezando fervorosamente para encontrar forças para suportar o nascer de mais um dia. Alessandro deslizou a ponta do dedo em seus lábios.
Depois inclinou-se e beijou-a de leve.
_ Assim está melhor. Acaso esqueceu que eu conheço seu gênio difícil?
Mas aquele beijo não lhe foi suficiente e ele tornou a saborear a doçura de sua boca. O desejo de ambos despertou.
Dando-lhe a mão, Alessandro conduziu Adrienne até a villa.

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