Estava escuro quando Adrienne abriu os olhos. Ficou quieta por um momento, captando os sons à sua volta. Toda a energia havia sido drenada de seu corpo. Arquejante, como se tivesse corrido muitas léguas, respirou fundo e tentou normalizar a respiração. Agora, não eram os aromas do opulento quarto renascentista que lhe assaltavam as narinas: a fragrância de óleo turco de rosas, o perfume de frutas suculentas e o indefinível cheiro da paixão. Não, agora tudo o que podia sentir era a brisa marinha, misturada ao cheiro de mofo que parecia ter se instalado por toda a parte desde que interrompera o aquecimento do castelo.
Ela pressionou a palma da mão sobre a testa. Tinha conseguido. Estava de volta ao Castelo de Beaufort. Obrigou-se a se endireitar e olhou para o próprio corpo. Usava o mesmo vestido de antes, com o corpete rasgado e a saia levantada até os joelhos. Teria sonhado?, indagou-se, examinando sua triste indumentária. Talvez, sua imaginação tivesse criado uma fantasia para poupá-la do horror de ser violada pelo detestável Fabien.
Não; ponderou. As reminiscências da noite anterior mostravam-se nítidas demais para serem uma reles fantasia. Ela era capaz de recordar tudo nos mínimos detalhes. Cores, cheiros, texturas. Tudo era real demais para ser apenas um sonho.
Adrienne olhou a seu redor. Seus olhos cor de avelã cintilaram na penumbra, à espreita. Um raio de luar incidiu sobre ela, derramando um filete de luz prateada sobre uma de suas mãos. Foi aí que percebeu uma marca escura riscando a linha do dorso. Tocou-a de leve, já intuindo que se tratava do sangue que Sandro derramara na noite de núpcias. De algum modo, havia carregado aquela marca através dos séculos. Ao relembrar o sacrifício a que ele voluntariamente se submetera, crispou a mão. Ao dar-se conta da terrível escolha que tivera de fazer, foi sacudida por soluços. Sua visão ficou turvada de lágrimas.
Compreendia perfeitamente que jamais poderia ter permanecido naquela outra realidade. Precisava voltar para salvar Charlotte de Lambert e a criança. Por outro lado, como viver com o remorso de saber que, se houvesse permanecido no mundo de Alessandro, poderia ter tido uma chance de ajudá-lo a escapar da traição e da morte?
Ela fizera sua escolha. Duas vidas contra uma. A vida de
Sandro não lhe dizia respeito. Já a vida de Charlotte e de seu filho eram de sua inteira responsabilidade. Secou as lágrimas com um gesto brusco. Ainda tinha muito a fazer. E, embora sua vida agora lhe parecesse um deserto de desolação, não lhe era dado capitular.
Repentinamente, como se uma vaga impressão se cristalizasse, ela passou pela porta envidraçada e olhou para o céu noturno, onde a lua cheia vagava por entre nuvens esgarçadas. Torceu as mãos, incrédula. Como a lua podia estar cheia, se duas noites atrás ainda era lua nova? Tinha certeza disso, pois estivera na praia, vendo o barco de Pai Duroc partir com seus passageiros, rumo à costa inglesa. Ela havia se ausentado apenas por uma noite... ou não? Seu cérebro fervilhou, à procura de uma resposta plausível para aquele impasse.
Adrienne voltou ao gabinete. Quando seu olhar pousou no retrato de Isabella, deixou escapar um grito de puro horror. O quadro parecia ter sido atacado por um maníaco. Os golpes e talhos haviam tornado a pintura irreconhecível. A faca que ela usara para se defender de Fabien achava-se cravada na garganta de Isabella. Adrienne sentiu um suor gelado banhar-lhe a fronte. Pois era exatamente aquilo que Fabien teria lhe feito, não quisesse o destino que ela fosse transportada através dos séculos. E era exatamente isso que Fabien lhe faria se conseguisse apanhá-la.
Ainda que o retrato mutilado lhe provocasse calafrios, ainda que o ímpeto de fugir dele fosse quase incontrolável, Adrienne sabia o que tinha a fazer. Aproximou-se do quadro e inspe-cionou-o. Por milagre, o mecanismo por trás da tela continuava intacto. Cuidadosamente, começou a apalpá-lo. O quadro se moveu. A porta secreta surgiu.
Adrienne deu um suspiro de alívio.
Mal havia entrado no quarto quando o impacto da colisão com Charlotte de Lambert quase a derrubou ao chão.
Dieu, merci! Eu já tinha perdido a esperança de que voltasse para nos libertar! A viúva de Jean de Lambert apertou-lhe o braço com tamanho desespero, que suas unhas se cravaram na carne de Adrienne. Perdi a noção do tempo, mas ficamos presos aqui durante dias. Dias!
Dias? Mas eu só me ausentei por uma noite...
Onde? Onde esteve todo esse tempo? Como pôde ir embora, deixando-nos aqui trancados?
Adrienne balançou a cabeça, lembrando-se da mudança da lua. Fitando a mulher amedrontada à sua frente, finalmente compreendeu que, enquanto estivera em outra realidade, ocorrera um lapso de tempo. E as horas, por obra de algum sortilégio bizarro, haviam se transformado em dias.
Desvencilhando-se de Charlotte, pôs-se a andar de um lado para outro. Tinha que tomar uma atitude. Fazer planos. Mas, mesmo enquanto repetia para si mesma que não devia ficar de braços cruzados, sabia que não podia permanecer no castelo. Ela, Charlotte e a criança precisavam sair dali o quanto antes. Logo que o dia raiasse, era quase certo que Fabien voltaria para ajustar contas. E terminar o trabalho que começara no quadro. Se ela lograsse chegar à aldeia, o Pai Duroc os acobertaria até que pudessem atravessar o Canal em segurança Com o espírito acuado por premências e por lembrança que não era capaz de compreender, Adrienne voltou-se pa Charlotte.
Precisamos sair daqui. Não há tempo a perder. Pousando a mão no ombro da outra mulher, tentou confortá-la.
Acha que conseguirá caminhar um pouco?
Charlotte assentiu. Assim, guiadas por Adrienne, ela e a criança deixaram o castelo sob o manto da noite.
O luar, ao mesmo tempo em que facilitou, também dificulte a descida até a aldeia a beira-mar. Se por um lado iluminav as rochas escorregadias, por outro, tornava-os um alvo fáci Tiveram então que caminhar à sombra das rochas, pisando i cegas.
Ao avistarem os tetos das humildes choupanas de pescadores, Charlotte agarrou a criança e estacou. Sua voz estridente foi abafada pelo vento.
Não! Não me faça descer até a aldeia!
Acalme-se. Ninguém lhe fará mal. Eu prometo.
Não entende, senhora! Não posso arriscar a vida de meu
filho!
Ficarão seguros...
Não! gritou Charlotte, e a criança começou a chorar Não!
A tensão de Adrienne cresceu até um limite insuportável Confiaria sua própria vida aos pescadores da aldeia, mas compreendia perfeitamente o temor de Charlotte. Naqueles dias de instabilidade política, muitos eram os que não vacilavam em fazer denúncias contra seus concidadãos.
Não diga mais nada. Virão comigo ela ordenou, segurando Charlotte pelos ombros. Seu tom era firme mas brando e revelava a autoridade de alguém habituado a ter suas ordens obedecidas sem questionamentos.
A outra cedeu com um suspiro cansado. Adrienne ignorou uma pontada de remorso e sorriu-lhe.
Bom. Foi muito corajosa. Seria lamentável pôr tudo a perder depois dos incontáveis perigos que enfrentou, ce nest pas vrai?
Deslizando nas sombras, os três alcançaram enfim a cabana do Pai Duroc. Adrienne adiantou-se e bateu à janela. Ouviu um murmúrio seguido de passos e a janela foi entreaberta.
Sou eu, Adrienne de Beaufort ela sussurrou.
Cest la petite comtesse. A condessa de Beaufort o pescador murmurou por sobre o ombro.
O Pai Duroc abriu a porta e puxou-a para dentro. Adrienne acenou para Charlotte, que também entrou, trazendo o filho. No interior da choupana, a claridade era fraca e pairava o cheiro de peixe e madeira velha.
Condessa Adrienne! o velho pescador Duroc exclamou, esquecendo-se da hierarquia que os separava. Segurou-lhe as mãos efusivamente. Fabien, aquele miserável, vem revirando a cidade para encontrá-la. Onde esteve, ma petitel
Isso não importa. Ouça-me, Pai Duroc. Esta mulher e seu filho precisam fugir daqui o mais rápido possível. Homens de Paris estão em seu encalço. Será que pode ajudá-los?
Encolhendo os ombros largos, o velho coçou o queixo. Meneou a cabeça.
Não é recomendável fazer nenhuma viagem até a lua nova. Agora, com a lua cheia e os informantes de Fabien dando busca na cidade...
Ela e o filho correm perigo. Se ficarem aqui mais um dia que seja, poderão ser reconhecidos pela gente de Fabien.
Adrienne pousou a mão no ombro do pescador, suplicante. Ele olhou para Charlotte, refletiu um pouco e assentiu, taciturno.
Bon. Farei o que estiver a meu alcance.
Era tudo o que Adrienne precisava ouvir. Aliviada, apertou a mão do velho amigo.
O que fará, comtesse Adrienne?
O que farei?
Sim. Tampouco pode ficar aqui. Se Fabien apanha-la vai desonrá-la e depois mandá-la para a guilhotina. Tem que fugir para a Inglaterra. Só lá estará a salvo.
Ela encarou-o com infinito pesar.
Não posso, meu bom amigo. Tenho que ficar aqui para dar cobertura a outros fugitivos.
Se ficar, não será capaz nem de ajudar a si mesma. Não percebe? Ele agarrou-lhe o braço. Fabien a matará! Adrienne fitou-o longamente.
Uma ideia começava a minar nas profundezas de seu íntimo. A primeira vez em que a vi, comtesse, era uma garotinha de apenas três anos. Tinha fugido do castelo para ir catar conchás na praia, lembra-se? Vinte anos se passaram desde aquele dia. Vinte anos de amizade. Pois saiba que eu a estimo muito. Prefiro perdê-la para os ingleses a vê-la cair nas garras de Fabien.
Adrienne continuou a fitá-lo, mas seu pensamento estava muito longe dali. Escutava a voz do pescador sem registrar suas palavras, enquanto, em seu íntimo, uma idéia ganhava vulto e expandia-se até se apresentar com a intensidade uma visão. Existia, sim, um lugar onde poderia ir se refugiar. Um lugar onde sua presença era mais necessária do que ali.
Comtesse Adrienne?
Não houve resposta. Profundamente absorta, Adrienne estava agora às voltas com um emaranhado de temores e perguntas sem resposta. Se de fato estivera naquele outro mundo como se certificar de que seria capaz de retornar para próprio tempo? Acaso o retrato de Isabella a traria de volta? E, caso se encarnasse na ancestral mais uma vez, o que seria de seu corpo, de sua alma? Sobretudo, seria ela capaz de viver ao lado do estranho com quem passara uma noite tão ardente... tão casta?
Não, mas ele não era mais um estranho. Ele era o homem que a havia tratado com gentileza quando lhe seria de direito saciar seus apetites carnais com quanta rudeza lhe aprouvesse. Era o homem cuja graciosidade e beleza faziam o coração de Adrienne bater mais rápido. Era o homem cujo futuro sangrento ela conhecia em cada detalhe.
Adrienne não demorou a tomar sua decisão.
De súbito, notou que o pescador a sacudia, interpelando-a com veemência.
Comtesse Adrienne, está me ouvindo?
Oh... sinto muito, Pai Duroc.
Lá fora, o céu clareava com a chegada da aurora. Ela começou a se impacientar. Sua intuição lhe dizia que não havia tempo a perder. Nem naquele mundo nem no outro.
Escute, Pai Duroc. Eu tenho um esconderijo. Um lugar longe daqui. O velho pescador tentou objetar, porém, Adrienne silenciou-o com um gesto. Por favor, cuide de Charlotte de Lambert e de seu filho. Fará isso por mim?
Sim, mas para onde...
Não sei se conseguirei chegar até lá. Reze por mim... Reze por mim!
Assim dizendo, ela apertou-lhe a mão e precipitou-se porta afora. Ainda ouviu vozes atrás de si, chamando-a. Ignorou-as e se pôs a correr. O sentimento de urgência crescia em seu peito.
Em questão de minutos, estava de volta ao caminho sobre a aldeia. Em diversos trechos, escorregou nas pedras, e suas pernas e mãos ficaram cobertas de arranhões que ela nem sentiu. Seus pulmões queimavam. Suas pernas latejavam de dor. Mas Adrienne não parou.
Não demorou muito, avistou o castelo envolto na névoa, recortado contra o céu cinzento da madrugada. Nisso, tropeçou em um tronco atravessado na alameda e caiu estirada no chão, o rosto comprimido contra o cascalho. O impacto da queda pareceu esgotar o que ainda restava de suas energias, e Adrienne continuou estendida, incapaz de esboçar o menor movimento. Foi quando ouviu o latido dos cães.
Corra, Adrienne, corra!, repetiu para si mesma, no auge da aflição. Não obstante, continuou ali, paralisada, de olhos fechados, como se tivesse desistido de lutar contra o destino. E então pensou em Alessandro. O rosto dele despontou em sua memória, insuflando-lhe novas forças. Ainda assim, Adrienne demorou alguns minutos, preciosos minutos, para se pôr de pé. Respirando fundo, tomou fôlego e disparou para o castelo em desabalada carreira.
Ao transpor a porta envidraçada, foi violentamente puxada para trás. Ante a perspectiva de ser capturada por Fabien, não conteve um grito de terror. Torceu o corpo, num frenesi, e viu que a manga de seu vestido enganchara no trinco da porta. Fez um movimento brusco para se soltar e inadvertidamente cortou o polegar na vidraça quebrada.
Ela correu para o gabinete. Suas pernas começavam a fraquejar de novo. Cambaleando, acercou-se do retrato e deslizou as mãos sobre a tela. O latido dos cães ecoava-lhe nos ouvidos de modo ensurdecedor, amplificado por seu próprio medo. Os sons tornaram-se mais próximos, mais agudos, e Adrienne teve certeza de que os animais já a haviam farejado. Palmilhou o quadro desesperadamente. Em que ponto o tocara antes? Onde?
Os cães chegaram diante do castelo, e o ruído áspero de suas patas no cascalho tornou-se audível. De repente, puseram-se a latir de um modo diferente. Olhando por sobre o ombro, Adrienne viu um cão enorme emoldurado entre os batentes da porta. O animal rosnou, pondo à mostra os dentes pontiagudos. Dentro de segundos, ele a estraçalharia.
Adrienne gritou, as mãos ainda pressionando o retrato. Seu grito encheu o ar, ela sentiu que o chão se abria a seus pés.
Rodopiou então em um vácuo negro, os ecos de seu grito martelando-lhe o cérebro.
Antes mesmo de abrir os olhos, Adrienne soube que o destino havia se apiedado dela. Inspirou profundamente o perfume de óleo de rosas que impregnava o quarto. Descerrou as pálpebras e viu-se caída no chão, nua.
Apoiando-se à parede, ergueu-se, e sua cabeça tocou o retrato de Isabella. O quarto estava silencioso, e as cortinas do dossel, cerradas, exatamente como quando partira dali algumas horas antes. Ocorreu-lhe que talvez, afinal, nunca tivesse saído daquele aposento. Súbito, sentiu que estava prestes a explodir de tensão. Teria sonhado? Mais uma vez, teria sonhado? Acaso ainda lhe caberia viajar no tempo para libertar Charlotte de Lambert e a criança? Crispou as mãos, corroída pela dúvida. Experimentou uma pontada de dor, baixou os olhos para o polegar e viu o ferimento causado pela lasca de vidro. O sangue ainda vertia do corte e, com toda clareza, ela reviveu os últimos momentos que passara no castelo de sua família. As imagens eram tão reais, que quase podia aspirar o cheiro salgado do mar que o vento trazia. Viu a si mesma avançando pela alameda do castelo, tropeçando, percorrendo corredores, debatendo-se, machucando o dedo na porta de vidro...
Adrienne examinou o próprio corpo à procura de outras marcas. Sua pele dourada, porém, estava imaculada. Ela tornou a fechar os olhos. Era como se lhe tivesse sido permitido carregar consigo uma única marca. Um sinal de que, com efeito, levara a cabo sua missão.
Ela foi até a cama. Cheia de apreensão, afastou as cortinas. Sandro continuava dormindo, os cabelos negros ocultando-lhe parcialmente as feições e um meio sorriso de abandono pairando nos lábios. Com o que ele estaria sonhando agora? Ao contemplá-lo, Adrienne foi invadida por uma onda de afeição. Reconhecia a necessidade de livrar aquele homem do perigo, de respeitá-lo, de tentar fazê-lo feliz. Mas ainda não sabia que nome dar ao sentimento que se apoderava de todo o seu ser, preenchendo-lhe o coração, trespassando-a com um misto de alegria e de agonia.
Com o coração batendo descompassado, cobriu-se e deitou-se ao lado de Sandro. A luz dourada da manhã insinuava-se no quarto e Adrienne concluiu que dessa vez tivera sorte: conseguira realizar sua viagem sem o descompasso de tempo que quase lhe impossibilitara salvar Charlotte e o filho. Contente, ficou olhando Sandro. Queria tocá-lo, mas esperou. O ar estava morno e fragrante. A seda da colcha afagava-lhe a pele nua e, logo, sentiu as pálpebras pesadas...
No momento seguinte, deu-se conta de estar sendo sacudida com violência. Um par de garras de ferro arrebataram-na e obrigaram-na a se sentar.
Pelo fogo do inferno, onde esteve?
Adrienne arregalou os olhos, sem fala.
Responda-me!
Sandro empurrou-a e tornou a puxá-la para a frente, seus dedos enterrando-se nos braços dela. Adrienne meneou a cabeça pateticamente. Ele forçou-a a ficar de joelhos sobre o leito.
Quando despertei ontem pela manhã, não a encontrei em parte alguma. Sandro apertou os lábios, desgostoso. Se meu pai não fosse o regente de Siena, seus irmãos já teriam me matado... ou, pelo menos, tentado me matar.
Ele fez uma careta de desprezo. Em seguida, fitou-a de modo penetrante, estreitando os olhos.
Não sei que jogo está fazendo comigo, Isabella. Mas de uma coisa tenho certeza... As mãos de Sandro deslizaram para os ombros dela e fecharam-se em torno de seu pescoço. Não serei seu joguete. Entendeu bem?
Não havia mais cólera em sua voz. Porém, o tom aveludado que agora usava era ainda mais ameaçador.
Ontem seus irmãos me acusaram de havê-la submetido a maus tratos. Ele aumentou a pressão dos dedos no pescoço de Adrienne. Eu lamentaria muito se realmente tivesse que maltratar minha esposa. Compreendeu?
Ela aquiesceu desajeitadamente.
Ótimo.
Sandro soltou-a. Adrienne precisou recorrer a todas as suas forças para não tombar no colchão.
Agora quero uma explicação, madonna.
Ela enrolou-se na colcha e sentiu as batidas alucinadas de seu coração. O que poderia dizer-lhe? Sandro nunca lhe daria crédito se revelasse a verdade. E como poderia, se nem ela mesma conseguia acreditar no que estava acontecendo?
Nada fiz que o desabonasse. Adrienne experimentou nova onda de pânico ao ouvir uma voz que não era a sua. Mas forçou-se a ficar calma. Eu precisava de um tempo a sós.
Então precisava de um tempo a sós ele imitou-a com sarcasmo. E não hesitou em expor-me à vergonha pública. Sabe que fui motivo de riso na corte? Que tive que enfrentar seus detestáveis irmãos? Que, por ordem de meu pai, fui feito
prisioneiro em meus próprios aposentos até que se provasse que madonna Isabella estava sã e salva?
Controlando o pânico crescente, Adrienne estudou-o por um momento. Percebeu que Sandro não estava simplesmente contrariado. Seu orgulho fora ferido, sua honra, insultada. E, embora não pertencesse àquele tempo, compreendeu o que a honra significava para um homem como ele.
Suavemente, ciente de quanto suas palavras soavam patéticas, disse:
Sinto muito. Se pudesse, eu de bom grado desfaria o que fiz. Perdoe-me, Sandro.
Já lhe disse que ninguém me chama por esse apelido.
Adrienne sorriu.
E eu lhe disse que era assim que o chamaria.
Eu deveria puni-la por sua insolência.
Sandro fitou-a com fisionomia grave, depois deu uma gargalhada. Sua reação encorajou-a, e o sorriso de Adrienne transformou-se também em uma risada.
Mas não me punirá, não é?
Seria uma pena deixar marcas em uma pele tão sedosa quanto a sua...
Ele correu os dedos pelo braço de Adrienne. Sentiu uma onda de desejo. Dessa vez, prometeu a si mesmo, haveria de possuí-la. Suas belas súplicas não o demoveriam de seu intento.
Sandro deslizou para a borda da cama e levantou-se.
Venha. Agora precisa exibir-se diante de todos.
Apertando a colcha contra o peito, Adrienne pôs-se de pé.
Quando viu Sandro avançar até a porta, estacou. Certamente seu marido não pretendia que fosse se exibir em tal desalinho. Porém, lembrando-se dos costumes da época, concluiu que isso era exatamente o que ele pretendia.
Sandro parou à porta. Franziu o cenho ao vê-la imóvel ao lado da cama. Olhou-a de modo inquisitivo.
Posso ao menos me vestir, Sandro?
Lá vinha Isabella de novo, confundindo-o com seu jogo, Sandro pensou. Não havia como negar que desempenhava seu papel à perfeição, simulando medo e ao mesmo tempo fingindo fazer de tudo para se mostrar corajosa. Sim, ele sabia que tudo aquilo não passava de uma encenação descarada. Por que, então, sentia o impulso de acreditar nela?
Sandro voltou sobre seus passos e postou-se diante de Adrienne.
Não. Não pode se vestir por ora.
Adrienne abriu a boca para argumentar. Sandro pousou os dedos em seus lábios, impondo-lhe silêncio. Seus olhares se encontraram. Por mais que a juventude lhe inspirasse o despudor, ele achava o comportamento da esposa assaz estranho. Tão estranho quanto sua própria tolerância. Tomando a colcha nas mãos, enrolou-a ao redor do corpo de Adrienne à maneira de uma toga romana, prendendo-a em um dos ombros. Quando terminou, apontou o queixo em direção à porta, num sinal de silenciosa autoridade.
Lado a lado, eles cruzaram o aposento.
Sandro bateu com os punhos na porta e recuou. Quando a porta foi destrancada, deparou com os dois cunhados.
Isabella, carissimal os dois exclamaram em uníssono, fazendo menção de abraçá-la. Foram detidos por um gesto imperioso de Sandro. Onde esteve? Ele a maltratou?
Embaraçada por estar coberta apenas com uma colcha, Adrienne corou.
Não há nada de errado comigo, meus irmãos.
Onde esteve, piccolina! repetiu o que tinha estatura mais baixa. E como conseguiu sair do quarto sem que ninguém a visse?
Era Piero quem falava, Adrienne deduziu, reconhecendo-o por meio da fina cicatriz que acompanhava a curva de seu maxilar. Notou a frieza que transparecia no olhar dele e instintivamente se retraiu.
Está não é a única porta do aposento despistou.
Depois, com um movimento casual e elegante, ele fechou a porta do quarto e girou a chave na fechadura. Quando tornou a fitar Adrienne, ela compreendeu que o prazo que lhe pedira havia se esgotado. Porém, já não sentia medo. Em vez disso, uma estranha excitação apossou-se dela.
Agora, madonna, veremos se o sangue que derramei foi realmente um embuste ou não. Sandro aproximou-se, até que seus corpos quase se tocassem. Não me insulte mais com seus rogos.
Adrienne compreendeu que ele estava determinado a possuí-la. E, graças a uma sabedoria que repousava em seu inconsciente, sabia que, para construir uma vida ao lado dele, teria que dar antes de receber. De repente, tudo lhe pareceu tão simples. Sandro já não era um estranho. Sandro era, afinal de contas, o destino que ela deliberadamente escolhera para si.
Sandro murmurou, espalmando a mão no peito dele.
Lembra-se do que eu lhe disse, Isabella?
Adrienne aquiesceu, sentindo as batidas do coração dele contra a palma de sua mão.
Isso é um convite?
Os dedos dela distenderam-se numa carícia inconsciente. Sorriu.
Sim.
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As Duas Vidas de Adrienne
RomanceAo ser levada para o leito nupcial, Adrienne não tinha como fugir: dentro de instantes teria de entregar sua pureza a um estranho! O duque Alessandro di Montefiore, precisava consumar aqueles casamento arranjado. Mas não confiava em sua esposa: Isab...