Capitulo Quatorze

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Providenciarei para que receba sem falta os alimentos e as ervas de que precisa, irmã  Adrienne prometeu, guardando a lista de itens numa bolsa de couro, que entregou a Ângela.
Antes que pudesse impedir, a freira curvou-se e beijou a manga de seu vestido.
Que Deus abençoe madonna e a casa dos Montefiore.
Adrienne aceitou os agradecimentos. Perguntou-se o que a irmã diria se soubesse o que estava prestes a fazer. Quando se virou para deixar o hospital, Ângela fez menção de segui-Ia. Adrienne deteve-a com um gesto:
Espere-me aqui. Vou rezar um pouco  esclareceu, e indicou a catedral que ficava do outro lado da piazza.
Eu acompanharei madonna.
Prefiro ir sozinha, Ângela. Espere-me aqui ...,.. ela reinterou, com os nervos à flor da pele. Depois, vendo que a outra se magoava e arrependendo-se do tom brusco que usara, apertou-lhe a mão e apressou-se em sair.
O vento frio fustigou-lhe o rosto. Adrienne puxou o capuz da capa e protegeu-se da chuva. A passos rápidos, cruzou a praça e subiu os degraus escorregadios da catedral.
No interior da igreja, as velas acesas não chegavam a espantar a tristeza daquele dia cinzento de setembro. Mal se lembrando de ajoelhar e fazer o sinal-da-cruz, Adrienne precipitou-se para o lado esquerdo da nave. Olhou nervosamente em torno de si. Agradeceu aos céus que a catedral estivesse deserta. Com o mau tempo, a maioria dos moradores de Siena preferia se encerrar dentro de suas casas.
Ela deteve-se quando alcançou a grade de bronze que demarcava a pequena capela de São João Batista. Tirou o capuz e cobriu o rosto com um véu escuro que lhe dissimulava as feições. Esse gesto, que sugeria traição e subterfúgio, fez com que recordasse, mais uma vez, os riscos que corria. Mas não tinha alternativa, repetiu para si mesma. Só lhe restaria fingir. Não podia perder o controle da situação e ficar à mercê de Piero. Aí, sim, cairia em completa desgraça.
De repente, seu coração disparou de tal forma, que o ar lhe faltou. Pressionou a mão sobre o peito e apoiou-se a uma coluna de mármore branco e negro. Por um momento, fechou os olhos. Logo tomou a abri-los, horrorizada com a cena que despontava em sua mente: ela e Alessandro em uma rua escura, cuja calçada estava tingida de sangue.
Desde sua última conversa com Piero, aquela cena a perseguia a cada vez que fechava os olhos. Imagens de sangue jorrando. Tanto sangue... Adrienne tentava se convencer de que apenas relembrava o relato que Isabella fizera em seu . diário:
Fingindo fraqueza, implorei a Alessandro que mandasse buscar a liteira. O homem que o escoltava saiu para atender meu pedido e nós dois ficamos sozinhos sob a sombra de uma construção inacabada. Percebi um vulto se aproximando e comecei a gemer para distrair meu marido. O vulto já se achava quase sobre nós quando me dei conta de que não estava preparada para prescindir do prazer carnal que Alessandro me proporcionava. Nem mesmo em prol de meus irmãos. Pelo menos, não ainda. Eu me virei depressa e puxei Alessandro. A faca, que deveria ter se enterrado em suas costas, cravou-se em seu ombro.
Mas, por mais que tentasse se persuadir do contrário, Adrienne sabia que as imagens impressas em sua mente não correspondiam exatamente à cena descrita no diário.
Respirou fundo uma, duas vezes. Pousou a mão no ventre. Já havia alterado tantos detalhes daquela história... Preservaria a vida de seu filho. E haveria de conseguir preservar a vida de Alessandro. Agarrando-se a essa esperança, firmou o passo e adentrou a capela.
Sua primeira impressão foi de que o local, iluminado apenas por uma vela, estava deserto. Quando percebeu que uma silhueta se destacava das sombras, tapou a boca para abafar um grito.
Como se enraizada ao chão, quedou-se no centro da capela, incapaz de um gesto. O desconhecido, envolto em um casaco grosso e com o capuz puxado sobre o rosto, aproximou-se. Quando estava a um passo dela, tirou o capuz e estendeu a mão aberta, mostrando-lhe um rosário de pérolas. O mesmo rosário que Adrienne dera a Gianni ao lhe confiar a tarefa de procurar um assassino profissional entre a escória da cidade.
Ela desconhecia as maquinações de Piero e achara mais seguro adiantar-se a ele. Como não podia se expor, indo e vindo como bem entendesse, incumbira Gianni de ajudá-la. O anão ouvira-a pasmo, enquanto as palavras saíam aos borbotões de sua boca. Quando Adrienne terminara de dar as instruções, ele a encarara do mesmo modo arguto que fazia as pessoas temerem a sua língua afiada. "Eu não faria isso por Isabella Pulcinelli, madonna. Mas vou fazê-lo por Isabella di Montefiore", Gianni dissera então. E, naquele momento, Adrienne dera-se conta de que o anão e Daria eram os únicos a intuírem que não passava de uma impostora.
Agora, paralisada no centro da capela, ela fixava a mão fantasmagórica estendida à sua frente.
O anão garantiu-me que madonna reconheceria este rosário.
Ao som da voz áspera do homem, o olhar de Adrienne transferiu-se da mão para o rosto dele. Seu semblante era duro, como se tivesse sido entalhado em granito. Numa das faces havia uma cicatriz funda, parcialmente encoberta por longos cabelos negros.
Sem se ofender com a reação dela, o homem sorriu, pondo à mostra uma fileira de dentes graúdos e fortes que, mais do que nunca, acentuavam sua aparência de animal predador.
Tem um trabalho para mim, não é, madonna? Com um gesto displicente, ele brincou com o rosário. Adrienne assentiu, como que saindo de um transe.
Sim, sim...  Ela cruzou as mãos sob as pregas da capa. Procurou se acalmar e disse:  Deve procurar um cavalheiro de meu círculo de relações. Mostre-lhe esse rosário e diga-lhe que eu o contratei para executar o trabalho sobre o qual já discutimos.
Muito bem. E que trabalho seria esse?
Adrienne abriu a boca para falar. As palavras ficaram presas em sua garganta.
Sou um bravo, senhora. Pelo preço justo, estou disposto a fazer praticamente qualquer tipo de serviço;
Ele se expressava de maneira franca, mais parecendo um honesto comerciante que descrevia suas mercadorias.
Esse cavalheiro disporá dos seus serviços para matar um homem.
Costumo cobrar dez ducados por um plebeu e vinte por um nobre.
Provavelmente ele calculara o preço de acordo com as finas vestimentas de Adrienne. Todavia, àquela altura ela estava disposta a pagar o que fosse preciso. Levantou a mão em sinal de advertência:
Mas não deverá matá-lo. Nem feri-lo. Compreendeu bem?  Adrienne deu um passo em sua direção.  Que sua faca não exiba nenhum traço do sangue dele. Compreendeu?
O matador franziu o cenho.
Nesse caso, meu preço será quarenta ducados, madonna. Fazer um trabalho em tais condições é muito prejudicial à minha reputação, se é que me entende.
De acordo. Se não me desapontar, eu lhe darei mais quarenta ducados após o serviço. .
E quando deverei executar o trabalho?  o homem perguntou, os olhos brilhando de cobiça. .
Amanhã. Aqui mesmo, nesta capela.
Adrienne entregou-lhe um saco de moedas e repetiu as instruções com todo cuidado. O assassino fez-lhe então uma mesura e preparou-se para partir.
Um momento, senhor.
Ele estacou, mas não se virou.
Reze para seguir minhas instruções à risca. Do contrárió
não viverá sequer para desfrutar a primeira parte do pagamento. Capisci?  Adrienne ameaçou, tentando disfarçar o tremor em sua voz.
Ho ben capito, madonna.
Com isso, ele puxou o capuz sobre o rosto e desapareceu na escuridão.

As Duas Vidas de Adrienne Onde histórias criam vida. Descubra agora