Seis.

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"Lídia, tremendo da longa travessia por escadas e corredores, enfiou-se na cama, enroscou-se"

"O ano da morte de Ricardo Reis", José Saramago


Francisco encontrava-se encostado ao seu carro em frente à escola secundária que Valentina frequentava à espera de ver o corpo da morena passar pelos torniquetes no meio daquela multidão de jovens que anseia abandonar o recinto escolar, e lá estava ela. Um sorriso dançava no seu rosto enquanto falava alegremente com uma rapariga loira, com a mão esquerda passa o cartão no leitor que fazia os torniquetes girar e com a mão direita tentava ao máximo não deixar cair a pilha de cadernos e livros que a acompanhavam. Quando o corpo da morena está prestes a sair pelo portão a cabeça de Francisco inunda-se de mil e uma ideias de como poderia chamar a atenção da jovem, mas isso não chegou a ser necessário visto que, os olhos castanhos de Valentina encontraram-se com os de Francisco e ambos sorriram.

- O que fazes aqui Francisco? – a estudante inquire após despedir-se da amiga.

- Temos Saramago para ler ou já te esqueceste? – Francisco murmura enquanto abre a porta do seu carro para Valentina entrar.

- É agora que me vais traficar os órgãos? – pergunta após pensamentos do dia que Francisco a levara ao cais de Alcântara aparecerem na sua mente.

- Talvez sim, talvez não.

O caminho até ao local, para Valentina ainda secreto, foi feito numa conversa de circunstância sobre como o dia de cada um tinha passado e a cantarolar algumas músicas que passavam na rádio. O carro de Francisco entra dentro de uma garagem e Valentina encara-o confusa ao perceber que estavam numa casa que presumira ser a de Francisco.

- Era aqui que Fernando Pessoa vivia? Ou era aqui que Marcenda e o seu pai vinham ao médico? – a morena brincou.

- Acho que nenhuma das respostas está correta, afinal nunca me apareceram por aqui desde que cá vivo. – Francisco entrou na brincadeira dando de ombros.

- Mas agora a sério, o que é que estamos aqui a fazer?

- Então, eu pensei que hoje podíamos ficar na minha humilde casa a ler Saramago enquanto comemos a bela de uma pizza. – Francisco conta os seus planos enquanto entra em casa acompanhado da jovem de quase dezoito anos que observa atentamente cada pormenor das divisões.

- E pão de alho? – desvia o olhar da decoração e foca-o no de Francisco.

- E pão de alho!

- Então conta comigo. – Valentina diz enquanto pousa a sua mala e cadernos sobre um cadeirão na sala de estar de Francisco.

Após um almoço deveras divertido ambos se sentaram sobre a cama do número vinte e três para começarem mais uma tarde de leitura, desta vez, do quinto capítulo da obra que os juntara há uns meses atrás. A voz de Francisco começou a ecoar entre as quatro paredes brancas enquanto os olhos da morena caiam sobre as páginas que iam sendo passadas pelo jogador.

- "Meia hora depois, a porta abriu-se. Lídia, tremendo da longa travessia por escadas e corredores, enfiou-se na cama, enroscou-se, perguntou. Então, o teatro foi bonito, e ele disse a verdade, Foi, foi bonito". – Francisco terminou a leitura fechando o livro em seguida e desviou o olhar para Valentina que dormia sossegadamente sobre o seu ombro.

A verdade é que mais uma vez, Francisco tivera-se perdido pelas palavras de José Saramago e não se apercebera que a jovem tivera adormecido pouco depois de este referir-se que o médico do Porto tinha ido comprar um bilhete para o teatro ao Chiado.

Cuidadosamente, Geraldes coloca a cabeça de Valentina sobre a sua almofada e após pousar o livro sobre a sua mesinha de cabeceira deita-se ao lado da jovem que passados poucos segundos ajeita-se na cama colocando a sua cabeça sobre o peito de Francisco. Francisco sorri e enquanto deixa pequenas festinhas no longo cabelo da morena deixa também que o cansaço se apodere de si, e numa versão recente de Lídia e Ricardo Reis os dois jovens permaneceram ali adormecidos.

Saramago || Francisco GeraldesOnde histórias criam vida. Descubra agora