Anjo

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Três batidas na porta, o toque já conhecido da campainha e ela entra correndo pela casa. Parece um furacão. Derruba um copo, escorrega na água que molhou o chão e cai, com sorte, sobre o pufe que está encostado na parede. Levanta-se, pragueja algumas coisas que não entendo e, quando peço para se sentar, me manda à merda. Diz que está nervosa mesmo e que não quer se acalmar. Brigou com o novo namorado. De novo.

Espero uns dez minutos até que realmente possamos conversar. Depois de xingar o cara de tudo quanto é nome, me conta que descobriu algumas mentiras. Eu já menti para você, digo. Ela ri, diz que é diferente. Eu sou seu melhor amigo, posso até mentir às vezes se não fizer mal. Agora, ele era o cara dela, gostava dele. Num segundo consegue enumerar diversas qualidades. Sinto ciúmes. Eu também faço ela rir, também faço bem. E o tal cara não é nada de demais. É mais um dos problemas que ela traz para que eu ajude a resolver.

Me sinto mal quando ela faz isso e me coloca no meu devido lugar. É como se nada pudesse crescer dentro de mim. Somos amigos. Ponto. Confesso que é difícil imaginar alguma coisa entre nós. Os amigos dizem que combinamos. Que sou tipo um anjo na vida dela. Ela mesma já disse isso. Sentada, mexe no celular à procura de alguma mensagem. Conversamos coisas um pouco mais amenas agora.

Num segundo em que vou no quarto pegar algo para lhe mostrar, ouço os soluços. Começou a chorar. De novo por causa do cara? Meu Deus, quando as mulheres vão aprender a parar de chorar por cafajestes? Pego um copo de água com açúcar, envolvo-a em meus braços e digo que tudo vai ficar bem. Não sei em que momento acontece, mas a gente então se beija. Simples, bonito e um desejado beijo entre dois amigos.

"Preciso ir", ela diz. Na mesma velocidade em que entrou, se vai. Sem compreender direito o que houve, me pego olhando para o espelho e, agora, quem xinga sou eu. Não aceito o que fiz. Como pude ter ido tão longe? Eu não podia estragar tudo. Tento repassar os poucos segundos em que estivemos com as bocas juntas e relembro uma mão em minha nuca, um morder nos meus lábios. "Ela queria o beijo", penso, tentando me convencer. A consciência sente dor. Não marco o tempo. Sei apenas que o telefone toca.

– Abre a porta – diz a voz dela do outro lado da linha.

– Por que você não toca a campainha e vem fazer um estrago na minha vida de novo? – pergunto.

– Porque você acabou de estragar a minha.

Pelo olho mágico eu a vejo. A fechadura anseia ser virada. Ela está em pé, me encara. "Como eu demorei tanto a perceber?", os dois poderiam perguntar. E eu descubro que, além de seu grande amigo, posso ser seu grande amor. 

Destino, Acaso ou Algo Mais Forte (2014)Onde histórias criam vida. Descubra agora