Até Que um Dia

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Todas as histórias de amor podem usar aquela expressão "até que um dia". A gente se conhecia, conversava. Era amigo mesmo. Até que um dia, ele pegou minha mão e eu senti. Primeiro foi o calor do corpo dele passando para o meu no simples toque dos dedos, das palmas abertas se entrelaçando. Subiu um arrepio que me trouxe logo uma outra sensação: não era só amizade.Constatar isso é um passo mínimo perto de todo o esforço que está por vir. Seja para aceitar que algo mudou, para resistir e lutar contra ou, então, escancarar de vez que agora é amor e pronto. Na teoria é simples. Escolhe um caminho, fecha os olhos e vai. Na prática, é preciso colocar o coração na berlinda de qualquer jeito. É ganhar ou perder sem engano.


Devo ter deixado transparecer. Se ele simplesmente queria a minha companhia, em segundos eu queria fazer parte da história dele. Poderia ter sido ruim, não fosse o fato de estar apaixonada por um dos caras mais cabeças de vento que conhecia. Mesmo se eu colocasse uma plaquinha no pescoço dizendo o que se passava comigo, ele leria e perguntaria: "Mas quem é o felizardo que eu não conheço?".


De repente, me vi evitando os lugares em que ele ia, deixei de sair se fosse pra dar de cara com alguma menina nos braços dele ou que estivesse simplesmente perto dele. Não conseguia evitar meu ciúme, não conseguia parar de pensar nele, na gente. Até que ele reparou. Não que eu o queria, mas que algo tinha mudado. "Você tá estranha." Homens adoram essa frase tanto quanto as mulheres curtem "precisamos conversar".


E por mais clichê que possa parecer, a coisa toda de eu tentar evita-lo foi por água abaixo quando ele começou a ficar com uma menina do condomínio dele. Ela me assombrava, ia a todos os eventos com ele. Até ocasiões que eu não poderia perder.


Resolvi guardar meu amor num cantinho bem fundo do meu coração. Não queria me expor e acabar perdendo a amizade. Se me declarasse, não teria chance alguma contra uma menina que morava a algumas casas da dele, tinha o cabelo loiro impecável, menos cintura, mais peito e mais bunda que eu. E parecia, realmente, gostar dele.


Eu não atrapalharia isso. Desculpa, mas eu sou assim. Penso primeiro que ele está feliz, e nada pode ir contra isso. Eles se mereciam. Eu? Esperava. Esperava que, num passe de mágica, aquilo tudo mudasse em mim. Esperava outra pessoa, sei lá. Eu me ocupei, fiz outras mil coisas. Mas, no final, acabava com a cabeça no travesseiro pensando em como estava sendo burra, porque se eu me afastasse ficaria sem nada. Não tinha o amor nem teria a amizade.


Era quase meia-noite quando me dei conta disso. Tinha voltado há um tempo de um bar com outros amigos. Tinha também me levantado assim que o vi entrar no lugar com a menina. Fingi que ia ao banheiro, dei dois beijinhos nele e par- ti. Deixei minha parte da conta e, com o coração acelerado, entrei no carro e só parei em casa.


Como se uma loucura tivesse tomado conta de mim, resolvi finalmente explicar para ele por que estava estranha. Ia dizer que não tinha gostado da menina, mas omitiria qualquer coisa a respeito do que eu sentia. Tentaria, então, dizer que estava com ele para tudo, que a nossa amizade não poderia se perder.


Chovia, para variar. Quando alguma coisa tem que ir contra você, todas as outras vão junto, como um efeito dominó. Só faltou furar o pneu do carro, mas pense em trânsito, cruzamentos com experiências de quase morte e desvios de rota por conta de bolsões d'água que se formaram em dez minutos de chuva forte. Culpa desse prefeito que não resolve os problemas da cidade! Ah, e o porteiro do condomínio não queria me deixar entrar. Disse que, provavelmente, estavam todos dormindo. Olha isso!


Liguei pra ele e dei um susto logo. Mandei vir até o portão ou ligar para a portaria. Fui autorizada a entrar e, quando che- guei à porta da casa dele, lá estava o menino que combinava um calção de corrida e uma camiseta sem graça da melhor maneira possível. O carro parou com um tranco e eu saí. Em três segundos já estava ensopada.


– O que você tá fazendo aqui? – ele já perguntou logo.– Fala direito comigo. Parece que eu tô atrapalhando alguma coisa. Parece que você não gosta de mim.– Eu não sei o que está acontecendo contigo! Eu não te reconheço mais, cara. Cadê aquela menina que estava comigo pra tudo, que me contava as coisas, que ria comigo? Cadê aquela parceira pra quem eu podia contar meus medos?– Tá aqui! Isso que eu vim te mostrar! Será que você não percebeu o que está acontecendo? – achei que meus planos estivessem indo por água abaixo, junto com o resto da minha maquiagem.– Percebi que você mudou pra muito pior. Nunca achei que você fosse capaz de abandonar seus amigos!– Você fala como se estivesse cheio de problemas! Você não tem nada pra reclamar da vida! – eu vivia dizendo isso pra ele.– E agora você tem essa menina aí pra te ajudar."Amor", alguém gritou lá de dentro. Eu disse, quando algo dá errado, tudo conspira no mesmo sentido. Não demorou mais que alguns instantes para o portão da casa se abrir e a loira peituda aparecer na porta. Os poucos pingos de chuva que ela pegou bastaram para transformá-la numa espécie de beldade de um desses concursos "Garota Molhada", e eu fiquei morrendo de vergonha do meu corpo colado contra a roupa que não revelava nada. Quando me viu, a cara dela fechou.Enquanto o idiota ia atrás dela e me pedia pra não sair dali, pude ouvir o barulho de chaves. Logo ela passou por mim com um molho na mão e batendo o pé. Não deixou nem um recado, mas pela cara dele quando ficamos sozinhos ali tomando chuva, eu percebi que era grave.– Quem se explica primeiro? – eu perguntei.– Ela viu uma foto sua.– Que foto, Bocó?– Não me chama disso que eu não gosto desse apelido idiota. – Tá, explica logo!– Eu tenho uma foto nossa numa das minhas gavetas de cueca. Sério, eu estava totalmente perdida. Ou só não queria entender o que aquilo significava. – E?– E que não deve ser muito legal achar a foto de outra me- nina na gaveta do seu namorado quando está procurando uma camisinha pra transar. Acho que acaba todo o tesão.– Por isso ela saiu daqui assim?– Eu disse a ela que... – e não terminou a frase, só engoliu em seco.– Porra, agora você vai falar! Porque eu saí de casa que nem uma maluca, quase morri três vezes dirigindo...– Você dirige mal – ele me interrompeu– Não me interrompe! E cheguei aqui pra dizer o quanto eu tenho sofrido porque a gente está afastado. Eu sempre fui e vou ser sua amiga, mas não dá mais pra manter algumas coisas dentro de mim.– Como assim?Acho que a ficha dos dois começava a cair.– Eu preciso dizer que eu te amo. Tô nem aí se você não sente o mesmo, se você quer sair correndo atrás daquela menina ou se você vai rir. Foda-se. O que eu não posso mais é ficar carregando o peso de te amar e, por isso, não poder estar perto. Porque é isso que acontece. Você chega perto, e eu tremo, a mão sua e, quando vou ver, estou mandando mais olhares apaixonados por segundo do que qualquer filme romântico que eu já tenha visto. Como você não viu isso tudo? – gritei.– "Você tá estranha", não foi o que você disse? E eu estava mesmo, porque te evitava pra não te atrapalhar.


E ele começou a rir. Que raiva que me deu! Minha vontade era pular no pescoço dele e socar aquela cara até que ele entendesse que eu gostava dele, mas eu não tinha forças pra nada. Só de confessar tudo isso eu já tinha gastado quase toda minha energia.


– Isso que você nunca entendeu também. Você não atrapalha nada. Você sempre foi onde eu me desembolava. Você sempre esteve ali, e eu nunca consegui ser grato o suficiente. Nunca consegui admitir que, por trás da máscara do amigo, existia outro interesse.

As fichas caíram. A minha e a dele. Naquele momento, todos os segundos que dividimos passaram na minha cabeça e eu vi o tempo que tínhamos perdido. Perdemos tempo com outras pessoas, noites e camas e, agora, tudo se encaixava. Ainda que algumas outras coisas tivessem que ser explicadas, não importava muito o que aconteceria depois.

Éramos dois corpos molhados. Éramos dois num só abraço. Éramos eu, ele e um beijo. Éramos uma vontade represada há tanto tempo que só aquele beijo na chuva não daria jeito.Até que um dia, no meio de um beijo nosso, eu tirei a prova: era ele quem eu queria. A gente se tornava mais que amigos. Éramos um do outro de vez.

Destino, Acaso ou Algo Mais Forte (2014)Onde histórias criam vida. Descubra agora