Capítulo 2 - Ophelia

57 4 0
                                    

Eu acordei, mas a escuridão que permeia o inicio de todos os sonhos não foi embora. O que esperava ver – meu quarto – não surgiu. Nenhuma imagem se desenhou em minha frente. Apenas escuridão e silêncio. Eu não poderia ter noção de como o tempo passava nessa escuridão, mas segundos foram suficientes para me sufocar e me colocar em desespero. Eu não conseguia saber se meus olhos estavam realmente abertos, eu levei os dedos até eles enquanto gritava sem conseguir me ouvir. Eu gritava por socorro, senti minhas cordas vocais arderem, mas não escutei nenhum sussurro de minhas palavras. Eu não escutava nada. Quando alguém tocou meu braço eu enlouqueci de medo. Parecia que minha respiração se perdia, como se paredes se fechassem a minha volta e me apertassem, como se um vento forte soprasse contra meu rosto impedindo o ar de sair de meu peito.
Mesmo me debatendo não consegui sair do lugar, eu estava deitada, mas a sensação era a de estar flutuando no meio do nada. Eu acertei alguém, e foi tudo naquele momento.
Em pouco tempo no meio dessa escuridão e silencio eu comecei a escutar meu nome. Eu escutava meu nome. "Ophelia, aproveite essas ferias mocinha..." eu ouvia a voz de Kristina como uma lembrança... mas quando procurava pelas imagens, onde estava ela? Não havia ninguém. Eu me perguntava o que havia acontecido. Onde estava ela? E onde eu estava? Eu falava, mas não escutava minha voz. Eu não conseguia enxergar nada.
— Socorro — eu me imaginei gritando enquanto sentia escorrer pelo rosto a umidade de minhas lágrimas.
Ao menos elas continuavam existindo.
Senti a sonolência pesar meu corpo, e a consciência lentamente se deixar levar por ela.

— Ophelia, aproveite essas ferias mocinha! Teremos muito trabalho depois!
Sorri enquanto me despedia com um aceno de Kristina. A maioria das pessoas achava estranho o modo com a qual ela me tratava, com diminutivos, pelo fato de eu ser muito mais alta que ela. E até mais velha. Nosso plano – ou melhor, plano dela – era iniciar o próprio negocio no começo do próximo ano. Eu havia me formado em Design pela Universidade de Artes de Berlim, juntamente com Kristina. Nós estávamos comemorando o sucesso de nosso trabalho final em um pub na avenida Ku'damm, junto com outros colegas, quando a ideia de criar um negocio veio a tona. Entre uma e outra rodada de cerveja e após varias divagações a respeito do nosso futuro, percebemos que não sabíamos o que iríamos fazer da vida daquele ponto em diante.
— Vou voltar para Madrid, mas não sei o que vou fazer lá... — confessou um de nossos colegas, eu não lembro o nome dele, Kristina era quem mais conhecia as pessoas, principalmente os rapazes, não que ela saísse com muitos, mas ela era simpática e muito bonita. Eu não fazia tanto sucesso com as pessoas ou rapazes, não por ser feia ou antipática, mas por me manter mais na minha, procurava ficar mais distante das pessoas, talvez fosse pelo medo que nunca tinha me deixado desde que cheguei em Berlim.
Assim que ele disse isso, Kristina me chamou "no canto" e me contou a ideia. A principio achei improvável, me forcei para diminuir os ânimos dela. Eu geralmente acabava com o entusiasmo dos sonhadores a volta, trazendo a realidade das coisas a tona. Mas para minha surpresa, não havia sido uma ideia de momento, e sim algo que ela estava planejando a meses, e que provavelmente aconteceria com ou sem a minha ajuda. No fim eu estava concordando em fazer parte desse plano.
Mas a respeito do medo, ele é um medo comum para estrangeiros, o medo do desconhecido e de ser um estranho num lugar que nunca parece seu. Naquele momento eu me sentia confortáveis em estar voltando para casa, após dois anos sem ver meus pais, o que eu mais queria era vê-los e deitar em minha cama mais uma vez, provavelmente ela iria estar do mesmo jeito que eu a deixei quando sai do país.
E então eu estava encarando as nuvens do outro lado da janela do avião. Conforme se aproximávamos da costa um belíssimo luar foi se revelando ao meu lado saindo detrás das nuvens. Foi quando eu vislumbrei a sombra de uma mão não humana ofuscar aquele esplêndido cenário. Por um segundo eu fiquei apenas observando, tentando encontrar uma explicação racional para aquela visão. A maioria dos passageiros dormia naquele momento, portanto, poucos escutaram um estampido que ecoou dentro do avião. No mesmo instante notei a súbita perca de altitude. Meu coração acelerado pela adrenalina me impediu de soltar qualquer grito. Mas diversas pessoas gritaram ao mesmo tempo, algumas enquanto voavam pela abertura que havia surgido na escotilha por onde diversos tentáculos gosmentos despontavam emitindo um som de um grito agudo que fez minha consciência se perder naquele mesmo instante.
Quando acordei pela segunda vez e meus olhos lentamente se abriram, para minha surpresa e alivio, um vestígio de luz adentrou eles. Mesmo que a visão estivesse embaçada, o fato de poder ver imagens mesmo que sem forma passando diante do meus olhos era melhor do que escuridão tenra que eu havia vivenciado. Eu estava deitada e olhava para cima, notei o movimento ondulatório de alguma coisa, pisquei varias vezes para tentar enxergar melhor, mas não adiantou. Quando tentei levantar a mão para limpa-los me descobri amarrada a cama onde estava. Me debati me sentindo ofegar novamente, o desespero fez com que o foco voltasse a minha visão. Quando encarei o teto novamente meu corpo paralisou, congelado de medo.
Incontáveis olhos me encaravam abrindo e fechando enquanto deslizavam como trepadeiras em meio a ele. Não havia ninguém ali, mas ainda assim eu gritei com medo daquelas coisas que olhavam para mim. E foi a pior coisa que eu poderia ter feito. Todos os olhos presos naquele corpo que parecia uma mistura de carne e tronco de arvore de repente se abriram me encarando de forma sincronizada. Um som agudo como um grito ecoou de poros que pareciam sulcar o ar em meio a coleção de olhos demoníacos.
Um liquido viscoso começou a escorrer por eles, uma mistura de verde fluorescente com manchas brancas. Quando as primeiras gotas caíram em cima do meu corpo, o cheiro e gosto que respingara em meu rosto me fizeram nausear e não pude evitar de virar e vomitar. A criatura se movia acima de mim e eu não conseguia me soltar das amarras.
Eu chorava ao mesmo passo que vomitava. Por medo, nojo e desespero. Eu não suportava olhar para criatura, é indescritível a sensação de imagina-la caindo sobre mim. Em meio aos meus gritos de socorro senti uma picada no braço esquerdo e novamente minha consciência começou a dispersar enquanto eu encarava a criatura rastejar pela janela que havia sido aberta. Eu esperava sentir o aroma do ar fresco vindo de fora, mas tudo que senti foi um cheiro de podridão e o olhar de uma criatura chifruda que havia surgido se debruçando na janela esboçando um sorriso de dentes pontiagudos da qual escorria saliva verde e viscosa.

Az' VardumOnde histórias criam vida. Descubra agora