Capítulo 6 - Ophelia

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Não sou uma pessoa religiosa, nunca entendi muito bem os dogmas e os conceitos que giram em torno das religiões, não parecia fazer muito sentido para mim, no entanto, lembro-me muito bem do conceito de inferno descrito por meus pais. Um lugar horrendo onde os maus eram mandados para pagarem por seus pecados, seus atos de maldade. E o preço pago seria o sofrimento eterno, gerado por demônios que comandavam o lugar.
Nunca imaginei que tal lugar poderia existir, desacreditei das conversas sobre religião e as ignorei por completo por achar que haviam coisas mais interessantes e concretas para se ater, mas agora vejo o erro que cometi. Agora sei que não enlouqueci, mas que estou morta.

Morta e enviada para o inferno. Tentei ponderar os pecados e maldades que eu cometi em vida de forma a justificar a sentença que me foi aplicada, mas não cheguei à conclusão alguma. O que é correto, não é? Meu conceito de certo e errado, bondade e maldade com certeza não são os mesmos do juiz que me enviou para esse lugar, portanto, enquanto me transformava e me desesperava com que estava me tornando, percebi que era inútil procurar as razões que haviam me jogado naquele inferno.
Minha pele está necrosada. Sinto protuberâncias pontiagudas ao tocar meu abdômen com meu braço esquerdo que se dividiu em um par de antebraços na altura do cotovelo enquanto o direito se transformou numa lamina óssea e pontiaguda com diversos buracos que abriam e fechavam sugando o ar e expelindo um liquido transparente que evaporava ao tocar o solo arenoso.
Eu chorei e me desesperei, mas nada disso fez com que a transformação parasse. Todos os membros agora atados ao meu corpo são nojentos e me provocaram ânsia e vomito por muito tempo até meu próprio estômago se transformar e aceitar aquela visão. Minha própria consciência está se transformando de modo aceitar aquele corpo. Por todas as descrições que já ouvi a respeito de demônios, é muito provável que de alguma forma eu esteja me transformando num exemplar deles.
Com muito esforço eu consegui sair daquela caverna onde acordei. Segui o curso do rio horrendo formado por vermes que se devoravam uns aos outros e se procriavam num mesmo ritmo horripilante. O som emanado pela correnteza era um encantamento atordoante que te convidava a pular em meio aos vermes negros e putrefatos. Por diversas vezes enquanto seguia o curso do rio, vi enormes vermes que possuíam o tamanho médio de um carro agarrarem em pleno voo as criaturas aladas de asas membranosas que faziam daquela caverna os seus lares.
Enquanto percorria aquele trajeto algo chocante aconteceu. Em determinado momento me aproximei demais, sem perceber, do curso do rio, talvez chamada pelo encanto ensurdecedor dos vermes, um deles saltou tentando me devorar. Minha reação foi tão rápida e precisa em desviar e atacar a criatura que ao termino da luta eu ainda me questionava em como aquilo poderia ter acontecido. A naturalidade dos movimentos me assustaram assim como a facilidade com que eu executei a criatura, sequer imaginava que meu braço poderia ser tão cortante. Mas avaliando a carcaça do verme percebi que o que a havia dilacerado não tinha sido a lâmina em si, mas sim o liquido ácido que a envolvia como uma pequena camada e que gotejava intermitentemente no chão deixando um rastro por onde quer que eu passasse.
Perdi a conta de quanto tempo se passou desde o dia que acordei neste lugar, o dia e noite possuem períodos mais curtos em relação ao que eu conhecia na outra vida. Fora da caverna percebi que o rio seguia sem fim em direção ao horizonte serpenteando o relevo morto, era possível vê-lo por meio do rastro fumegante que ele exalava para o céu nefasto que existe lá fora. O céu em questão é preenchido de nuvens negras, se existe uma estrela que aqueça esse mundo, os raios de luz não conseguem atravessar a nuvem fétida que envolve o mundo.
Gritos são ouvidos ao longe de criaturas que sobrevoam todas as regiões em busca de uma presa. Grupos são raros, quando os avisto, apenas me escondo e fujo. De alguma forma sei que criaturas são ameaçadoras e quais não o são. As sensações instintivas são estranhas, mas não tão estranhas quanto os sonhos que ainda tenho com a vida que deixei para trás, e eles de alguma forma me mantém presa aqui, quando eu sonho, ou melhor, quando tenho pesadelo, me vejo presa numa escuridão sem fim, onde não há imagens ou sons. Sinto meu corpo ser tocado, sinto cheiros estranhos, alguns até mesmo saborosos, mas é só.
O problema é: Toda vez que eu durmo, acabo acordando novamente na caverna em que estava.  

Az' VardumOnde histórias criam vida. Descubra agora