Os marinheiros descansavam no convés do navio pesqueiro, alguém havia colocado Somewhere Beyond The Sea no alto falante preso ao mastro. Era uma pausa de alguns poucos minutos antes de iniciarem o lançamento das redes no ponto correto. A musica tocava repetidamente, presa num loop sem fim, alguns não aguentavam mais escutar as notas da musica ou a letra, já outros a escutavam como se fosse a primeira vez, e a acompanhavam cantando. No entanto ninguém reclamava, era melhor que escutar novamente o som das gaivotas gritando e cagando para todo lado. Estava anoitecendo quando um dos homens simplesmente parou de cantarolar enquanto encarava o mar.
— Mas por Buda, que porra é aquela... — ele sussurrou para si e então gritou acenando para um companheiro ao seu lado — Hey, venha aqui, olha lá, o que é aquilo? Me diga, eu bebi?
O jovem se aproximou estreitando os olhos para a imensidão do mar aberto. Ao enxergar as sombras gigantes e diformes que se erguiam sobre o mar, sua voz gaga não conseguiu sair da garganta. A musica foi desaparecendo do autofalante, e conforme mais homens perceberam o que estava a frente deles começaram a gritar o nome do capitão. Ele apareceu em questão de segundos ao rebuliço da sua tripulação. Todos os homens apontaram na direção das sombras.
— Rinji, reverta o curso, e coloque toda força nos motores! — o capitão gritou cabine adentro.
Os homens começaram a ficar desesperados lá embaixo.
— Escutem! Hoje não é nosso dia de morrer! Vão para seus lugares, seus bastardos!
Por um momento pareceu que as palavras do capitão haviam surtido efeito nos ânimos da tripulação. Mas um grito de desespero, algo que parecia vir de outro mundo ecoou, fazendo a espinha dos homens gelar.
— Buraco!!! Tem um Buraco no oceano!
— Não! É um abismo!
O capitão encarou as sombras gigantes de formas humanoides se virarem para o barco dele, um estrondo ecoou conforme elas davam seus passos. A pele no rosto do homem começou a enrugar como se a vida dele estivesse sendo drenada pelo ar.A imensidão da obscuridade de teus sonhos irei espreitar
Meu amor que acumula as sombras da lua profana
Tal como um viscoso véu negro e ondulante vai te encontrar
E envolve-la em uma fria dança de...Ele sentiu a respiração quente sobre seu ombro direito e rapidamente tratou de esconder a folha sobre a qual rabiscava.
— O que foi, Erryl? — perguntou a jovem para o professor — Por que não você não me deixa ler o que escreve?
— Luna... — ele sorriu — O que faz aqui a essa hora?
— Não tente mudar de assunto... — disse a moça dando a volta no banco.
Erryl ficou sem jeito, sempre ficava sem jeito perto dela. Era comum com todos, mas com ela, sua desenvoltura social era totalmente extinta. Era o que chamavam de paixão.
— São só bobagens, você não iria querer ler.
— Deixe-me ler, vindo de você, eu tenho certeza que não é bobagem.
— Não Luna... é que, são poemas...
Um misto de horror e surpresa se desenhou no rosto da moça.
— Mais um motivo para me deixar lê-las! — o tom de voz dela indicava uma leve indignação.
Luna era professora de letras, e amante de poesias. Erryl se virou guardando as folhas dentro de sua pasta.
— É constrangedor...
Ela deu seu típico murmúrio, sorrindo do jeito que apenas ela sabia fazer.
— Oh, então são poemas românticos?
O professor em questão tinha vinte e seis anos, dois anos mais velho que a professora e ainda assim ela já era doutora enquanto ele havia recém conseguido seu título de mestre. Ela era incrivelmente inteligente, e o fato dela não demonstrar superioridade e sempre manter o mesmo jeito simpático com as pessoas foi um dos fatos que fizeram Erryl se apaixonar por ela.
— N-não — respondeu ele, e depois se arrependeu do tom que empregou.
— Está bem, mas certifique-se de mostrar para ela — Erryl encarou Luna — palavras assim não podem ficar guardadas nas gavetas e escondidas, só irão desgastar seu coração Erryl.
Não pensou ele, era justamente por isso que ele escrevia, pra tirar de seu coração o que poderia destruí-lo em algum momento. Ele tomou as palavras com certo ressentimento, odiava quando a pessoa de quem gostava o 'jogava' para terceiros, a pouca esperança que tinha em um romance, sempre sumia em momentos assim.
— C-claro — limitou-se em responder, enquanto ela acenava um 'tchau'.
No entanto Erryl não estava escrevendo por conta de sua paixão, mas sim por conta de sua apreensão. Alguma coisa o estava deixando incomodado e nervoso. Havia um receio inexplicável perpetuando seus afazeres naquela manhã, e ele não conseguia encontrar o motivo. Era como se ele estivesse esquecendo algo. Ou algo estivesse para acontecer.
Sem vontade de voltar a escrever, ele se encaminhou para sua sala e mergulhou na leitura de seus livros antigos. Quando abriu a porta e adentrou a sala, rapidamente ele se encaminhou até a janela e a abriu até onde podia. Quando ele estava lá dentro, jamais fechava a porta. A luz iluminou o lugar, revelando livros empilhados e uma parede com dezenas de recortes de livros e outros documentos. Em cima de sua mesa havia uma folha com a foto de um pedaço de pedra com um título destacado em letras capitulares "A Realidade como Organismo em Decomposição", os olhos de Erryl encararam o documento por um momento.
Sua intenção inicial era relaxar lendo um pouco de Poe, mas no entanto, após encarar aquela foto seu corpo foi levado a sua seção de pesquisa. Livros que datavam do egito antigo se misturavam a outros de origem de cantos mais remotos do planeta, afora fontes de informação, também eram relíquias valiosas, o qual por vezes custavam um ano inteiro de trabalho de Erryl. Que era o caso de sua ultima aquisição. Fazer alguém se deslocar de outro país não era barato, os custos envolvidos iam desde do deslocamento até eventuais subornos necessários para se levar uma mercadoria sem registro de origem adiante.
Era quase começo do entardecer, o professor estava debruçado sobre um de seus livros fazendo anotações em uma folha avulsa, quando o guarda bateu em sua porta comunicando que a as salas teriam que ser deixadas mais cedo devido a inspeção da equipe de pragas. Erryl pediu porque isso estava acontecendo novamente, pois a equipe já havia passado pelas salas naquele ano, mas o guarda pouco sabia, simplesmente respondeu que era porque um dos docentes havia visto algumas "criaturas pequenas rastejando pelos corredores".
— Não demore, professor, o senhor sabe que quando eles começam a passar aquelas coisas, se torna insuportável respirar o ar.
— Muito obrigado, eu já estou de saída.
A mão de Erryl não saia debaixo das linhas indicadas por seus dedos, enquanto transcrevia passagens. Na pagina do lado esquerdo, uma gravura se destacava representando uma criatura no alto do céu, Erryl não conseguia dizer se aquilo representava o próprio sol, se fosse, era feito de carne retalha de qual estavam expostas o que poderiam ser vermes.
"Tal como a carcaça de um animal decompondo sobre a ação de fungos e bactérias, a própria realidade assim o faz. Em algum momento do tempo ela morre, e das dimensões implacáveis e obscuras da inexistência do tempo surgem tais criaturas, devorando o tecido da consciência dos seres vivos que habitam e formam aquela perspectiva do real. E conforme roem e devoram a carcaça de uma realidade moribunda, despejam os restos a deriva no tempo, que são as sementes para o enlouquecimento de todas as formas de vida."
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Az' Vardum
Terror"Se é tudo sonho. Me acorde agora. Se é real. Apenas mate-me" - X Japan. Um avião que havia decolado de Berlim sofre um acidente na costa oeste do continente americano, dando origem a uma sequência de eventos estranhos e assustadores que se espalham...