Capítulo 9 - Ophelia

8 1 0
                                    

Sempre que eu saia da caverna era tomada por uma sonolência inexplicável, dormia e acordava dentro daquele mundo escuro onde sentia os dedos de pessoas me segurarem e me arrastarem, tudo isso enquanto presenciava meu corpo se transformar dia a dia. É uma sensação angustiante essa, se ver presa sem poder contar com qualquer ajuda. Imaginei que ficaria presa toda eternidade dentro desse ciclo, tentar fugir da caverna e voltar para ela logo após adormecer. Mas nem por isso eu conseguia simplesmente parar de tentar, por mais que o fato de toda vez acabar voltando para a caverna me desanimasse e me mantivesse sem tentar por algum tempo, logo meu amago se enchia de ansiedade e eu novamente ia tentar uma fuga que eu sabia que não daria em nada. Era a sensação da verdadeira tortura, sentia que estavam brincando comigo. Cada vez que eu tentava, parecia conseguir chegar um pouco mais longe, criando aquela sensação de finalmente conseguir me livrar, mas então vinha a sonolência, eu gritava e segundos depois fechava os olhos e mergulhava na escuridão tão real e consciente quanto esse mundo horrendo.


Mas então há algum tempo atrás ao invés de correr para fora da caverna, como em todas as vezes que te tentei escapar, eu simplesmente caminhei. Andei próximo ao rio de vermes sem que o canto monstruoso deles tivesse qualquer efeito sobre mim, me esgueirei pelas pedras me escondendo dos morcegos artrópodes, uma mistura de ratos e mariposas que tinham resolvido aparecer para se abrigar de alguma tempestade funesta que havia feito até mesmo os vermes gritarem mais e as estalactites gigantescas por mais de um vez vibrarem e ruírem próximo do local de onde estava.
Saí da caverna esperando que a qualquer momento a sonolência viesse para me levar de volta para dentro daquele lugar que tinha tudo para se tornar minha catacumba. Mas ela não apareceu, e de início a expectativa me corroeu. Não sabia exatamente o que fazer pois a sensação que tinha era de novamente estar me sendo dada aquela esperança de fuga para então me jogarem na cara a impossibilidade de empreender o ato. Mas por algum motivo aquilo não voltou a acontecer, e assim caminhei para muito longe da caverna sem perceber o quanto havia feito exatamente, já que a todo momento estava preocupada com as criaturas que eu avistada pelo caminho o qual eu seguia. Resolvi seguir como no início, o curso do rio maldito, e como era de se esperar as margens que serviam de curso para aquela deformação da natureza, eram implacavelmente mortas. Quer dizer, não havia nenhum tom de verde ou azul onde quer que a visão chegasse, mas haviam coisas... Haviam coisas se mexendo as margens e aos arredores, semelhantes a plantas devorando carcaças de carne apodrecida e fungos cujas formas e aparência horrendas não cabiam em palavras.
Por nenhum momento eu havia sentido cansaço ou algum tipo de desgaste dentro daquele corpo, nenhuma fome ou necessidade de procura por comida, pensei que estava livre dessa particularidade humana, mas de repente comecei a sentir meus membros enrijecerem e as coisas que antes me causavam repulsa de olhar começaram a atrair meu paladar. Meu corpo havia sofrido tamanhas mudanças que são difíceis de explicar, minha boca por exemplo agora se encontrava onde era minha garganta, já meu rosto é uma massa cheia de buracos sendo que em dois deles estavam localizados meus olhos que por sinal eram o que ainda restava de humano em mim.
O tempo foi passando enquanto eu seguia o curso do rio de vermes, minha fadiga foi aumentando enquanto a vontade de saciar minha fome junto a carcaça das criaturas horrendas com a qual me deparava crescia. Lutava com todas as forças contra aquela vontade, e foi nessa luta que eu percebi que tudo aquilo só podia ser de um teste. Um teste para ver se eu sucumbiria àquela maldita fome por coisas moribundas e putrefatas, que acabaria com o resto de mim que eventualmente ainda era humano, ali estava a explicação para terem me deixado sair da caverna. Era um jogo, um jogo que eu provavelmente não podia ganhar.
Não muito depois dessa revelação, meu corpo já não conseguia se sustentar e eu começava a cambalear entre monólitos gigantes perdidos numa planície deserta. Havia uma criatura há não muito longe dali, uma bolota gosmenta que deixava um rastro para trás com seus dejetos, olhei para ela com desejo e assim comecei a caminhar em direção a ela com o objetivo de me alimentar, o instinto passando por cima da minha razão.
Mas antes de aplicar um golpe na criatura a razão tornou a me frear me dizendo que aquele era um passo sem volta. Mas a fome gritava mais alto, e mesmo a aberração tendo a forma de cérebro esponjoso e fedido que pulsava a cada minuto parecendo prestes a explodir, eu ainda sentia o desejo de morde-la ainda viva. E foi isso que eu fiz.
No entanto um grito me impediu de engolir a carne que havia arrancado da criatura.
— Espere! — foi o que eu ouvi e então me virei ao redor procurando pela voz. — Você está bem?
Não havia ninguém. Absolutamente ninguém em um raio de quilômetros até onde minha visão podia enxergar.
— Onde está você?! — gritei — Eu preciso de ajuda! Socorro!
Houve um pouco de silêncio.
— Acalme-se eu estou indo — a voz soou mais próxima de mim, no entanto ainda assim não enxergava ninguém — Como assim onde eu estou? Você é cega? Oh meu deus! O que aconteceu com você?
— Eu preciso de ajuda!! — gritei novamente querendo chorar, mas sem poder — Eu estou presa! Algo está acontecendo comigo?
— Você está toda pálida e machucada — respondeu a voz — Acalme-se você não está presa.
Eu comecei a me virar de um lado para o lado a procura da voz.
— Onde você está?!
— Eu estou aqui do seu lado — a voz soava como se assim estivesse — Por que está de olhos fechados?
— O que? — perguntei sem entender.
E foi então que veio novamente aquela sensação, não sabia se deveria rir ou chorar, eu até poderia tentar lutar contra isso, mas eu sabia que era impossível e assim portanto, deixei a sonolência me levar.

A escuridão dava início ao pesadelo... normalmente eu logo sentia meu corpo ser tocado, preso por dedos que pareciam me arrastar, mas dessa vez eu não senti nada. Pelo menos não nos minutos iniciais, só quando tentei me mover é que senti uma mão me agarrar, sendo que minha reação natural foi tentar me desprender e lutar novamente contra aquela tortura. E a despeito do cansaço e fraqueza que eu sentia, tentei no pesadelo mesmo em meio as trevas infinitas, atacar o que quer estive ali. E foi assim que de repente eu acordei...

Não na realidade que eu gostaria. Quando abri os olhos eu vi novamente os contornos da caverna, mas quando a visão ficou mais nítida percebi que estava de volta ao deserto onde instantes atrás eu tentara devorar uma carcaça moribunda, e isso foi alivio, sensação essa que não tive tempo de aproveitar porque logo escutei.
— Você está bem moça? — escutei novamente aquela voz quase sobre meu rosto — Por que fez isso? Deuses, não queria ter machucado ela assim... e se ela morreu...?
— Não!! — gritei — Eu não estou morta! Preciso de ajuda...
Não houve uma resposta imediata a despeito do poder do meu grito, e por um segundo imaginei que a pessoa já não podia mais me escutar.
— Você está aí? Por favor... eu preciso de ajuda.
— Como você pode falar sem mover os lábios? — foi a resposta da voz.
E foi assim que eu conheci Dena.

Az' VardumOnde histórias criam vida. Descubra agora