Em Lagun Street. Muitos quilômetros a oeste de Newtown.
O clima no interior do aposento poderia indicar por algumas características que estaríamos no quarto de um grande escritor chamado Bukowski. A fumaça, que mesmo não sendo de cigarro preenchendo o espaço do quarto e tornando-o denso e pesado, uma crua realidade contrastando com tudo o que ocorria lá fora, era uma evidência. Havia também um homem semi alcoolizado escrevendo num frenesi, páginas e mais páginas compulsivamente junto de sua raiva e não conformismo. Mas não era Bukowski, pois ele gostava e escutava música clássica com um objetivo muito diferente da qual Erryl escutava La Mer de Reinhardt repetidas vezes. Lembrava de Luna em cada nota do violão, do contra baixo ou do violino.
Ambos escreviam sem censura, escreviam o que viam a volta, falavam sobre a repulsa e o nojo que sentiam daqueles e daquilo que estava ao redor, mas as semelhanças terminam aqui, porque um escrevia sobre a própria vida e o outro sobre o que estava além da vida em si. Erryl era um sonhador romântico, bukowski não.
O professor bebia para abafar os sussurros moribundos que emanavam da névoa que rastejava lá fora, e assim de alguma forma concentrar-se em sua vingança, transcrevendo trechos e mais trechos de dezenas de livros com títulos escritos em línguas desconhecidas. Mas era impossível ignorar o que havia de diabólico além da janela do seu escritório, Erryl sabia que deveria ter deixado a cidade faz tempo, mas não poderia fazê-lo sem reunir todas as informações possíveis sobre a hedionda hipótese que estava diante de si. Sua vingança pela morte de Luna dependia disso e isso era tudo o que importava. Ele não possuía certezas, apenas trechos de livros ocultos escritos por pessoas julgadas loucas e escondidas da humanidade que poderiam explicar o terror que estava assolando o mundo.
O relógio marcava que era três horas da tarde de uma quinta feira, mas a névoa lá fora fazia parecer que era noite e o silêncio que era um domingo. A luz purpura preenchia toda a casa de Erryl passando através de frestas e janelas, sua luminescência causando enjoo ao ser encarada por muito tempo, como se a mesma estivesse invadindo suas narinas e se alojando como um parasita dentro do corpo daqueles que a respiravam. Mas o professor sabia que não era isso, mas apesar de tudo a sentia se tornando mais densa e isso se apresentava como uma contagem regressiva sufocante para o trabalho que tinha a realizar. Boa parte dele já estava dentro de sua bolsa em cima da cômoda a sua esquerda onde havia a janela logo a frente, onde do outro lado caminhava o terrível demônio descrito no tomo da loucura como "A névoa rastejante, semeadora da loucura", ou com um nome mais difícil "Nar'c'tha". Erryl já havia anotado os detalhes sobre ela, cujos aspectos macabros envolviam a contaminação da consciência dos seres vivos em geral, através do medo, e apesar de ser burra de um angulo, de outro, seu instinto proliferador era astuto e cruel, utilizando-se de armas vis para controlar e manipular os medos dos seres vivos e assim conquistar a consciência até mesmo dos sapientes. E o que acontecia após a conquista? Erryl quase não conseguiu descrever a metamorfose cruel. Todos os tomos que compilou a respeito dos monstros e do mundo de Az'Vardum configuravam uma ode ao apodrecimento da carne. Haviam três entidades, que apareciam em todos os textos: Nar'c'tha, Shuc'Yaog e Shutnyaafhr.
Enquanto encarava a mesma janela para pensar na conexão entre dois títulos (que citavam uma das três entidades aterradoras, o profanador da carne Shuc'Yaog), Erryl viu uma sombra passar do lado de fora em meio a nevoa que se exprimia contra a janela do seu escritório parecendo prestes a destruí-la. E não houve tempo de reação, o álcool que havia utilizado para amortecer seus sentidos e consciência afim de ganhar mais tempo dentro nevoa, se revelou um erro quando uma cria da prole demoníaca da névoa rastejante descobriu ele escondido ali, suas reações motoras condiziam com seu estado embriagado. Mas se por um lado a lentidão de seus movimentos concebia um infortúnio na luta contra a asquerosidade, sua falta de equilíbrio o salvou de um golpe dilacerante no alto do pescoço enviado por um dos braços corrompidos da criatura de olhos oblíquos. Olhar para ela seria um pesadelo se a pancada que recebeu ao cair no chão não o tivessem deixado tonto. Ao perceber que a criatura enlouquecida lutava para retirar o membro mortal que havia se cravado na parede para assim mais uma vez investir sobre ele, Erryl deu a volta desviando dos tentáculos menores que chicoteavam no meio do quarto parecendo mais próximos do que estavam realmente. Seu computador estava condenado, e os trechos que transcrevia no momento também. Apenas na segunda tentativa conseguiu agarrar sua bolsa contendo as anotações, e ainda assim ao correr em direção as escadas deixou algumas páginas caírem sem sequer notar. Mas ao chegar ao início dos degraus ele parou, virando-se para a porta de seu escritório onde a criatura soltava guinchos que provocariam dor de cabeça a qualquer um que estivesse com os sentidos mais capazes.
O terror lógico e instintivo deu lugar a raiva vingativa e irracional. Qualquer possibilidade de sobrevivência que tinha de chegar até seu carro e fugir da cidade Erryl estava jogando fora. Bebendo da fonte da heroicidade romântica de vingar a morte de sua amada, Erryl caminhou para o quarto pegando um antigo taco de golfe de seu falecido avó (cuja casa havia herdado) pendurado como decoração na parede do corredor. Caminhando lentamente até o quarto sentia em suas veias que aquela taco seria suficiente para aplacar as dores da alma de Luna que implorava por ser vingada, no entanto, não foi ele que investiu primeiro, para sua surpresa a criatura apareceu pela porta do quarto meio rastejando meio escorregando em meio ao liquido que se derramava pelo que uma vez fora seu braço direito, o mesmo que havia tentado decolar Erryl. Ao que tudo parecia a criatura havia rasgado o próprio membro tentando se soltar da prisão que havia criado para si mesma.
A coragem do professor se liquefez quando seus olhos viram de forma nítida a criatura primeira vez. Os olhos que se moviam sem nexo algum eram desconcertantes, mas não eram os únicos olhos que a criatura carregava consigo, haviam outros vários espalhados por todo o corpo descarnado em decomposição. O cheiro forte de peixe apodrecido atingiu Erryl como um soco no estomago, fazendo seu instinto novamente o guiar para longe de criatura que o tentava matar pela segunda vez. Mas a porta que estava no fim do corredor era de um armário trancado, cuja chave ficava numa gaveta do escritório de Erryl, ele tentou arromba-la em vão enquanto observava a criatura se mover com dificuldade até ele, com os tentáculos estalando cada vez mais próximos. Ao perceber que era seu fim, o professor começou a lacrimejar implorando que aquilo fosse apenas um pesadelo. Seus soluços foram silenciados quando seu pescoço foi agarrado por um dos tentáculos. Enquanto sufocava e se desesperava, Erryl ouviu os rangidos e sentiu enquanto o chão sob seus pés desmoronava. Ambos, criatura e Erryl ruíram para o primeiro andar da casa e ambos não se moveram mais.
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Az' Vardum
Horreur"Se é tudo sonho. Me acorde agora. Se é real. Apenas mate-me" - X Japan. Um avião que havia decolado de Berlim sofre um acidente na costa oeste do continente americano, dando origem a uma sequência de eventos estranhos e assustadores que se espalham...