2. Quarto escuro

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Ele acordou com um pesadelo, mas a parte assustadora era que, no sonho, o monstro era ele mesmo.

— Dormiu bem? — perguntou Dr. Crow.

As pupilas de Elliot se refugiaram no canto, desfazendo o contato com o doutor. Permaneceu assim por alguns segundos, em silêncio, antes de encará-lo com timidez e responder:

— Demorei um pouco pra dormir...

O doutor fez seu movimento no jogo. Há poucas semanas, ensinou as regras do xadrez a Elliot e Sara. Agora, estava jogando com Elliot na biblioteca, sentados em poltronas perto da janela, o que possibilitava ao harmínion admirar a neve lá fora.

— Por quê? — Dr. Crow indagou.

— Tava pensando na história que a Sara contou.

Dr. Crow segurou o queixo, pensativo, mais atento à conversa com o harmínion do que ao jogo.

— Qual história?

— João e Maria.

— Hum — o doutor resmungou, curioso. — E o que esses dois fizeram para te perturbar?

— Não eles. A bruxa...

— Ficou com medo da bruxa?

— Não. — Elliot balançou a cabeça. Encarou o doutor com tanto afinco que suas pupilas quase se arregalaram; Dr. Crow devolveu um olhar de intensidade idêntica. — Por que ela queria comer as crianças? Ela tinha uma casa de doce!

O doutor conteve o riso em um sorrisinho mínimo, entretanto deixou escapar um som abafado pelo nariz.

— Doces são mais gostosos? — ele perguntou.

— Sei lá. Cada um tem o seu gosto. Mas ela era sozinha.

— Como assim? — Dr. Crow procurou entender qual era a ligação entre doces e solidão que Elliot estava fazendo.

— Pra não ser sozinha, ela precisa de pessoas, mas ela come todo mundo! Se comesse os doces, não taria sozinha.

Esse ponto interessou ao doutor. A reflexão de Elliot poderia se referir a si mesmo, afinal, harmínions comiam qualquer tipo de ser vivo, inclusive humanos.

— Talvez ela não se importe de ficar sozinha. — Com esse comentário, esperava incitar Elliot a mergulhar mais fundo.

— Quê?! Ficar sozinho é horrível! — Elliot deixou transparecer o desespero e a tristeza em seu olhar antes de abaixar acabeça. — ...Eu sei como é.

— Ou ela pode ter outras amigas bruxas.

— Não pensei nisso... — o harmínion sussurrou.

O silêncio predominou e não seria Elliot a desfazê-lo.

— Sua vez. — O doutor o chamou para o jogo.

Elliot observou o vidro da janela, focando em seu reflexo. O que o diferenciava tanto dos humanos? Os olhos. Era a diferença mais evidente, embora, para ele, a diferença estivesse apenas no formato da pupila, pois todos tinham olhos de cor parecida. As orelhas também podiam ser um problema, porque eram puxadas para trás e terminavam pontudas, mas só um pouquinho. Podia esconder os dentes se mantivesse a boca fechada. Pelo menos as feições do rosto e os cabelos eram tão humanos quanto podiam ser.

Sem a menor pressa, Elliot mirou o tabuleiro. Jogara sem prestar a atenção necessária ao jogo e agora via que não existia nenhuma chance de se recuperar; a derrota era óbvia em todos os movimentos que imaginou. Ele aproximou o dedo indicador do rei e o cutucou na coroa, derrubando a peça.

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