0.2 Espinho

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"Espinho: o espinho evoca a ideia de obstáculo, de dificuldade, de defesa exterior e, por conseguinte, de abordagem áspera e desagradável."

- iris -

                Eu era capaz de passar horas ou fechada no quarto, ou num canto do relvado que rodeava a casa, ou até no meio da rua a ler livros sobre a simbologia grega ou hebraica das coisas. A simbologia do espinho tinha um lugar especial em mim, pois simboliza defesa face o exterior; defesa que eu havia desenvolvido ao longo destes dois anos.

O toque do pavilhão invadiu violentamente os meus ouvidos, pelo que me dirigi até ao cacifo para colocar o dicionário de simbologia que havia trazido comigo e dirigi-me até à sala indicada no horário: a sala 37.

No interior da sala melancólica, encontrava-se uma mulher perto dos seus 60 anos, com uma longa saia floreada e uma blusa branca diante de cerca de 12 mesas. Entrava alguma luz pelas janelas entreabertas, porém, ainda assim, o tom de luz naquela sala remetia a uma morgue.

"Bom dia, jovens. O meu nome é Mrs. Thompson e serei a vossa professora de História." Todos retribuíram com um bom dia ensonado e dirigiram-se a mesas aleatórias. "Uh, meninos, vou ter que vos pedir que se encostem à parede. É da minha preferência que se sentem por ordem alfabética, conforme eu irei chamar." Todos olharam com confusão para a professora e contestaram. Parece que eu seria a única a não contestar nada. Era-me indiferente qual o fútil ou hipócrita se sentaria ao pé de mim, eu não tencionava passar-lhe a mais pequena palavra.

Mrs. Thompson começou e cada um se ia lentamente sentando, ainda indignados.

"Miss Osborne"

'Aleluia', pensei.

"Mr. Hemmings"

Acabara de descobrir o meu parceiro. Ele era estranhamente alto; era dono de um brilhante cabelo dourado e os seus olhos partilhavam as cores com o oceano.

Sentou-se à minha direita, numa mesa encostada à parede na qual estavam as janelas. A vista era belíssima, era possível ver um enorme parque verde e vivo. A tal natureza impressionista que eu tentava a pintar a todo o custo, porém eu olhava e apenas via morbidez. O verde lembrava-me um pântano cheio de criaturas horrendas das histórias que se contam às crianças quando não querem comer os vegetais.

O meu parceiro, a quem eu conhecia apenas o último nome, nunca olhava para a janela, nunca olhava à volta para os colegas e apenas olhava esporadicamente para mim. Ele observava a professora num concentração desconcentrada. Eu entendia que, apesar de ele seguir todos os movimentos da professora, não ouvia nada do que ela dizia. Ele estava perdido em pensamentos. Em que pensaria ele? Seriam os pensamentos dele tão sombrios quanto os meus? Não lhe desejava esse mal.

Dei por mim a olhá-lo continuamente.

"Precisas de alguma coisa?" ele questionou num tom sério e rosto ainda mais sério. "Não" respondi-lhe simplesmente. Ele virou a cara para a professora de novo. Não posso dizer que não fiquei aliviada por ser uma pessoa de poucas palavras, mas os tais pensamentos que me eram secretos deixavam-me certamente curiosa. 'A nossa vida é aquilo que os pensamentos fizerem dela', uma genial citação do imperador romano Marco Aurélio.

Assim que atravessei o portão que separava o exterior e a escola, acendi um cigarro. Um hábito desprezível, porém não encontrei nada que melhor tentasse preencher o vazio dentro de mim. Por mais horrível que fosse o momento, era agradável saber que podia fumar um cigarro quando acabasse. Eu via alguns alunos de diferentes anos de escolaridade a fumar e sabia que eles fumavam porque transmite um certo mistério e aventura, mas eu fumava para morrer.

O meu tio permitia que eu fumasse, bebesse, talvez até que tivesse sexo numa casa de banho de um bar cheio de pessoas que só procuram alguém com quem ir para casa para ter exatamente o que eu poderia estar a ter na casa de banho. O meu tio era um espírito livre que defendia que eu desperdicei muitos anos da minha vida naquela família opressiva e que preciso de abrir as asas e voar. Eu ignorava toda a liberdade que me era providenciada, procurando apenas palavras alegres que pudessem ser escritas no meu espaço em branco. O tabaco e o sexo não eram opção e duvidava que o álcool o fosse também. Eu sentia-me perdida, oca, dorida. Não tinha esperanças nem objetivos nem sonhos. Eu não tinha sonhos. O quão triste é uma jovem de 17 anos não ter sonhos? Por muitos danos psíquicos que a família nos pudesse causar, a sua ausência do nosso quotidiano é quase tão sufocante como a sua presença maliciosa. Apesar de ter sido magoada vezes sem conta pela rigidez das palavras e dos atos e pela falta de compreensão; apesar de nunca ter tido pais que correspondessem ao meus critérios e às minhas visões de pais normais, sentir que não podia contar com eles era uma sensação aguda que deslizava no interior de mim ao pensamento.

Olhei em frente e encontrei o jipe preto lustrado de vidros fumados. Entrei, ainda com o cigarro na mão. "Adivinhas sempre, Iris" disse o meu tio em alívio, roubando-me o cigarro da mão." "Se eu não fosse santa, o que é que seria?" Olhámo-nos mutuamente e soltámos uma gargalhada. Estes momentos com o meu tio iluminavam-me o dia. Ele era a pessoa mais importante que eu tinha agora e, se ele algum dia desaparecesse, eu desaparecia também.

"Achas que eu sou o pior que aconteceu a esta família?" suspirei, olhando continuamente para a estrada. "Claro que não. És o melhor que me aconteceu a mim. Mas não digas à Stacy." Sorri, mas, desta vez, genuinamente. O meu tio não dizia muito estas coisas, mas, quando dizia, acertava em cheio. Com ele, eu baixava a guarda; eu deixava de ser um espinho e passava a ser uma rosa.

Chegámos a casa e ele limitou-se a parar o carro em frente ao portão. "Não entras?" questionei de forma confusa. "Hoje eu e a Stacy temos um jantar com uma amiga dela" disse, enquanto torcia o nariz e fazia o gesto de quem vai vomitar " mas deixámos-te uma pizza em cima da banca!" "Uhm, mal posso esperar" murmurei sarcasticamente. "Desculpa, Iris, sabes que nós não nos importávamos de te levar, mas ela disse que era uma noite de adultos." "Prefiro a pizza" disse, dando-lhe um beijo na bochecha perfeitamente barbeada. Entrei e deparei-me com a enorme casa vazia e desabafei "não sei o que está mais vazio, esta casa ou eu própria."

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Nota de autor: olá :-) espero que estejam a gostar! Tenho a certeza de que vou adorar escrever isto e espero sinceramente que vocês adorem lê-la. Desculpem estar sempre com esta léria, mas comentem as vossas opiniões e, caso gostem, votem. Obrigada :-)!

Ah, e quero agradecer os maravilhosos comentários que recebi no prólogo e no primeiro capítulo, vocês iluminam o meu dia!

Crash // l.hOnde histórias criam vida. Descubra agora