1.0 Cisne

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"Cisne: o cisne pode simbolizar a síntese das duas luzes, solar e diurna, simultaneamente. Quando isso ocorre, ele pode tornar-se andrógino, criando uma aura de mistério."

- iris - 

                Sexta-feira, o meu dia favorito. Não propriamente por ser um indicador de fim de semana, mas porque era o dia em que eu pegava no meu caderno e ia para uma floresta perto da casa do meu tio para desenhar e, mais tarde, passar para a tela. Uma floresta perto da minha casa. Estava na hora de parar de dizer casa do meu tio e aceitar de uma vez por todas que era a minha casa também. Era algo que a minha cabeça teimava em não assimilar, era estranho e, de certa forma, doloroso. Apesar de tudo, o único sítio onde eu queria estar era em casa, na companhia de pais que me deveriam amar pelo que sou e não me tentassem tornar numa versão jovem deles mesmos. Mas a vida não mó permitiu, e, na verdade, não me consigo ver, neste momento, a regressar para um local que não posso chamar de lar.

Tudo isto rondava a minha mente enquanto caminhava com o caderno numa mão, o lápis na outra e um maço de tabaco no bolso. Um vício degradante mas que, apesar de todas as malícias, me conforta quando ninguém é capaz de o fazer. Sentei-me num penedo envolto de ervas. Tinha a vista perfeita para um quadro: uma colina enorme, pintada de verde, com uma série de nuvens a pairar, tornando o céu cinzento, e algumas árvores em fila pela colina. O cenário era relativamente deprimente, contudo eu sei que iria ser capaz de o pintar de uma forma ainda mais deprimente é sombrio, está-me no sangue.

Peguei no lápis e comecei os esboços, porém não me concentrava o suficiente e nada do que desenhava estava sequer ligeiramente semelhante ao que os meus olhos observavam. Tudo o que pulava na minha cabeça era estúpido e ridiculamente atraente: Luke. Uns dias passaram desde o incidente em minha casa e não falamos desde esse dia. Não sei do que seria suposto falar nem como. Aquele quadro foi uma espécie de desabafo, foi um momento de epifania, foi algo estranho e humilhante. Foi um sentimento que traduzi para uma tela, uma tela que ele não deveria ter visto. A verdade é que eu queria apagar aquele dia, mas isso é obviamente impossível.

Prossegui o meu desenho e, ao fim de algumas horas, senti que já estava no caminho certo, contudo, fui forçada a continuar no dia seguinte ou na sexta-feira seguinte devido à escuridão que se instalava, após a sol se ter escondido. Fechado o caderno, levantei-me, mas a vontade de regressar a casa era pouca, pelo que apenas me encostei a uma árvore e permaneci a observar a paisagem que pousava diante de mim. Momentos destes eram fatais para a minha recuperação emocional, ainda assim eram os meus momentos favoritos; momentos de paz individual e interior.

Uma pinga no meu nariz perturbou a minha tão relaxante paz e, quando observei o céu, muitas outras invadiram a minha face gelada da brisa de inverno que corria. Levantei-me rapidamente e comecei a caminhar. Foda-se, só a mim. Acelerei o passo, ficar com a roupa molhada nunca foi das minhas coisas favoritas, porém, conforme virei à esquerda de uma enorme árvore, esbarrei contra um corpo, fazendo com que ambos déssemos dois passos para trás.

"Luke?!" exclamei, mais do que estupefacta. Ele limpou as inúmeras pingas que escorriam para os seus olhos e atirou-me aquele seu sorriso mágico inconfundível.

"Olá?"

Continuei a olhá-lo surpresa, sem perceber porque ele se encontrava na floresta próxima de minha casa.

"Não achas que nos devíamos despachar? Está a chover um pouco..." ele disse de forma irónica, num sorriso. Acenei e começamos a caminhar na mesma direção. Ele acoitava-me com um dos lados do seu casaco, apesar de eu ter um casaco bem quente vestido. Passados uns minutos já nos encontrávamos em frente a minha cada. Percebi que ele se preparava para se despedir, porém interrompi-o.

Crash // l.hOnde histórias criam vida. Descubra agora