Ondulando-se através da escuridão de uma noite amena, Lia surgiu abaixo de um pesado manto acinzentado, roçando o tecido viscoso na relva que teimava em brotar no topo da montanha rochosa. Seus passos eram suaves, lentos, como o toque dos dedos de um amante contra a pele de seu amado.
Não havia motivos para se apressar. Poucos se arriscavam em subir todos aqueles andares forjados em pedras cobertas de musgo e ranhuras pelo tempo. Aquele era o seu lugar seguro e ponto de observação. Longe das pessoas que comemoravam ao som de canções estridentes e distantes, ao mesmo tempo, o mais próximo que se permitia estar de qualquer mero aspecto de civilidade.
Empoleirou-se na pedra que formava uma ponta direta para a linha do horizonte e afastou o tecido macio que envolvia o seu corpo, enrolando as mangas que cobriam seus braços com o intuito de revelar as mãos esguias e brilhantes à luz da lua.
Sua pele era como o mais profundo alabastro. Suave e brilhante, adornada por pequenas sardas inconvenientes. Os dedos finos e de longas unhas afiadas como lascas de gelo embrenharam-se na parte superior do manto e o tecido escorregou-se em uma cascata prateada. Os cabelos derramaram-se livres, formando caracóis em grandes cachos castanho-dourados, fazendo-lhe sombras até a altura dos seus quadris. Mechas espessas que eram brilhantes ao sol e engrecidas durante o entardecer.
Os olhos, profundamente embolsados por sombras de noites mal-dormidas, eram do mais puro cinza, como prata derretida em uma forja. Mas eram em suas mãos que boa parte de seu poder se encontrava. Na ponta daqueles dedos frágeis e belos, onde uma densa sugestão de fumaça gélida flutuava de encontro ao ar e condensava a sua respiração, mesclando-se espontaneamente com a escuridão que irradiava de sua alma. Urzes congelaram aos seus pés e os pequenos insetos que pousavam no entorno foram flanqueados pela fumaça enegrecida, frio e sombras trabalhando em conjunto.
O ar crepitou e tremeluziu diante de seus olhos, provocando ligeiras ondas de êxtase que reviravam o seu estômago. Observava com estranho fascínio o modo como o mundo perdia a sua importância em momentos como aquele. O poder que lhe era adquirido em meio a escuridão corrompia aquilo que o resquício do frio em seu âmago não era capaz, e talvez isto tenha contribuído para que o seu coração fosse tão impenetrável e alheio a qualquer demonstração de emoção.
Por vezes, a vontade de ajudar aos outros era ofuscada pelo poder que ameaçava saltar de suas veias. Em momentos como este, afastava-se para longe do alcance dos humanos comuns, abria suas asas com um ímpeto de audácia embora a falta de prática a levasse aos resmungos e trejeitos pelos puxões que a membrana sensível lhe causava na coluna e alçava voo em um rodopio suavizado pelas sombras das trevas que a acompanhavam.
Distante e solitária, restava-lhe apenas observar e esperar até que pudesse liberar a sombra de ruínas que emanava de seu sangue, ciente de que por maior que fossem os seus esforços, nada poderia mudar o inevitável, de que não pertencia mais aquele mundo, restando somente uma sombra que obstrui a pouca luz que me resta.
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A Batalha da Existência (Volume 01)
FantasyNo ano 8.000 a.C, todo o universo se moldou em poder de nações distintas, cada um procurou se destacar e vencer todos seus inimigos. Muitos morreram em sua trajetória, e outros vão ressurgindo do vácuo para os holofotes. Os Guardiões do Universo se...