O pão estava mofado, a água estava rançosa. Minha visão volta ao normal gradativamente, apesar da gentileza da estranha a minha frente, desde que acordei nesse mundo esquecido, aprendi que não posso confiar em ninguém. Ela improvisou uma espécie de abrigo para nos proteger do sol, usando sucatas de seu carrinho, eu a estudei por alguns minutos — Você não é de falar muito amigo... - disse ela, me olhando através de óculos escuros, enquanto tirava o capuz verde militar e revelava os cabelos loiros, sujos de poeira, com tranças mais compridas que o corte desregular, olhos castanhos brilhantes e pela clara para os padrões da Vastidão, continuou — ... você é dura na queda, deve estar quase morto, a propósito, bela luta vovô, você acabou com o Nak, Cabeça de Porco, considere que eu lhe devo uma por essa proeza - eu não estava entendendo tudo muito bem, ainda estava meio sonolento, mas estava feliz por ainda respirar.
Tentei me levantar, com dificuldades me pus de pé. A moça a minha frente tinha por volta de 20 anos, fazia sentido me chamar de vovô, apesar de eu não saber mais exatamente minha idade, que deveria girar em tono dos 30 anos, as pessoas não costumavam chegar facilmente nessa idade, não nos ermos. Os Anciões de cada tribo, ou aldeia, são pessoas que geralmente não viajam pela Vastidão, ou possuem posses como mercados, água e sucatas militares - coisas de interesse comum, acabam tendo muitos seguidores e são protegidos por eles.
Fazia tempo que não ficava na companhia de alguém. Eu pude notar pela desenvoltura, que ela tentava sempre manter-se alimentada e hidratada, possuía um arco recurvo feito de partes flexíveis de sucatas, uma aljava com algumas flechas feitas de cacos de metal e madeira de escombros, se ela mesma fazia suas munições com certeza era uma artesã habilidosa, a visão do arco me causou um pequeno lapso - revi em minha mente a cena da flechada no peito de Otelo, e do doce som da flecha perfurando a carne do general Leão do Norte, foi aquela garota a minha frente que feriu letalmente um Senhor da Guerra da Vastidão? - a situação não era das mais favoráveis, agora estávamos sendo procurados — A Legião... Xavier... - disse eu com o pouco de voz que me restava — Pode ficar tranquilo, - disse ela com a maior naturalidade - há quatro dias eles nos perderam no desfiladeiro... - escutei um zunido no ouvido esquerdo, "eu estava em coma há dias... sendo carregado por essa menina?", não estava entendendo muito bem, mas haveria tempo para tudo, se saíssemos com vida daquele deserto.
Andamos pelas areias do ermo, ela puxando o carrinho e eu mancando e tropeçando nos pequenos bancos de areia a minha frente — Tem certeza que não quer que eu lhe carregue na maca? - eu balanço a cabeça dizendo que não, estou olhando fixamente para a construção em ruínas a nossa frente, pensando se teremos tempo para descasar um pouco, ela cochicha, mas eu posso ouvir vagamente — Do que esse cara é feito...
Entramos nas ruínas de algo que parecia ser uma oficina, estava apenas com as roupas do meu corpo, e enfaixado com alguns trapos então comecei a procurar por algo que pudesse usar para me defender de alguma forma, encontrei uma chave de grifo, "36 pol." em seu cabo estava gravado, ainda que meio enferrujada, aquela ferramenta tinha visto dias melhores, encontrei uma serra circular bastante debilitada, mas teria de servir, com um pedaço de arame que encontrei no meio das ferragens eu prendi a lâmina na chave de grifo firme o bastante para ter um machado improvisado. Na Vastidão, qualquer coisa, literalmente, pode ser uma arma e a diferença entre viver ou servir de comida para as larvas e as Rapinas. Olho e vejo que garota havia escondido o carrinho atrás de um dos destroços, inteligente. Ela estava juntando pedaços de sucata e móveis, puxou uma pequena pederneira da algibeira em seu cinto, começou a fazer fogo, olhei para fora e vi que o dia estava começando a virar noite.
A noite chegou a Vastidão. O deserto é impiedoso, frio intenso durante a noite, calor escaldante durante dia. A vegetação havia sido quase extinta, poucas áreas ainda possuíam árvores e arbustos, e mesmo dessa forma essas regiões encontravam-se distantes, quando não fortemente defendidas pela Legião ou os Caçadores, mas isso não importava, sabíamos que por hora estávamos a salvo dos legionários, porém a noite nos ermos abriga criaturas muito mais sanguinárias e perigosas que o próprio Xavier. O fogo nos manteria aquecidos e afastaria criaturas noturnas.
Sento próximo a fogueira, de frente para ela, ela com o arco e uma machete a sua frente, eu com minha chave de grifo pronta - tínhamos um impasse. Apesar de ela ter me ajudado e apesar de que naquele estado eu não oferecer risco a ela, nenhum de nós dois confiávamos plenamente no outro. Sobrevivência. Ela atira por cima das chamas um de seus pães, o fogo estala enquanto despejamos mais mobília e sucata para mantê-lo vivo, eu agarro o pão no ar, e faço um gesto de agradecimento. Sinto que a pressão alivia um pouco.
Ela me olha e pergunta — Como você se chama? - eu respondo apreensivo com os ruídos da noite — Isso não importa, eu vou ficar de sentinela, você descansa eu vou lhe acordar, então será a sua vez.
Ela se deita, vira-se para o fogo e diz — Eu sou Raja...
Eu fico olhando o céu de poucas estrelas, me sinto um pouco febril, mas vou sobreviver, já havia passado por coisas piores. Observo a caçadora pelas labaredas da fogueira, dormindo com o punhal em mãos. "Vamos ver o que o amanhecer vai nos trazer Raja..."
As chamas dançam a minha frente, sinto meus olhos pesarem. Adormeço.
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SANGRANDO POEIRA
Science Fiction1° LUGAR - No Concurso SELLERS em FICÇÃO CIENTÍFICA 5° LUGAR - No Concurso SAKURA em FICCÃO CIENTÍFICA "Tudo e todos se dirigem para o mesmo fim: Tudo vem do pó e tudo ao pó retorna" - Eclesiastes 3:20 *** Em mundo devastado pela Guerra do Cata...