Hunter e Collins estavam andando mais a frente na trilha. Era um dia nublado, comum nessa época do ano. A floresta estava ficando menos densa, provavelmente chegaríamos a uma clareira, talvez um rio, lago, ou quem sabe estaríamos perto de uma cidade ou rodovia. Katy estava cansada, choramingava muito, mas os dois soldados só paravam para reconhecer área, ou montar um acampamento improvisado. Collins havia se recuperado do assalto no nosso antigo acampamento, desde o ataque não havíamos mais tocado no assunto.
Escutei um som vindo pelo caminho que passamos. Hunter fez sinal para que ficássemos quietos. Alguns minutos de tensão, até que finalmente ele acena para continuarmos. Estávamos há mais de semanas caminhando, evitando vias urbanizadas e locais abertos, eu não entendia de táticas militares, mas qualquer um poderia perceber que era a melhor saída para a situação em questão. O Exército, ou pelo menos o que sobrou dele, havia se tornado uma espécie de milícia, não parecia que qualquer tipo de instituição política estava no comando, Hunter e Collins conversavam somente entre eles, quando assunto era que direção tomar ou qual ação desempenhar, eu sabia que para eles, era arriscado continuar conosco. Apesar disso, nenhum deles, em nenhum momento cogitou em nos separarmos.
Finalmente chegamos em campo aberto, era um terreno elevado, pois o caminho até ali havia se tornado mais ingrime conforme andávamos. Olhei para Hunter, buscando contato visual — Hey, Hunter, Katy está cansada, e eu também, vamos fazer uma pausa... — ele me olha, em seguida sinaliza para Collins, então ele olha novamente para mim — OK, garoto, ficaremos por aqui até o anoitecer, evitem andar por aí, acho que já estamos com bastante problemas para arranjarmos ainda mais coisas para nos preocupar — baixou a arma, e sentou-se nos pés de uma árvore mais adentro da floresta, observando o entorno.
Levei Katy para o outro lado da clareira, caso ele quisesse ir no banheiro ao algo assim — Billy... eu quero voltar para casa... podemos? — aquilo foi algo tão meigo, se não fosse de partir o coração, eu não sabia como dizer para minha irmãzinha que não tínhamos mais casa, pais ou lugar seguro para viver, mas ao menos tínhamos um ao outro. Olho para ela enquanto reviro minha mochila — Logo, logo nós vamos poder voltar Katy, mas enquanto isso por que você não se preocupa com isso aqui! — de dentro da mochila eu retiro uma barra de chocolate toda quebradiça, os olhos de Katy brilhavam — Chocolate! — ela exclamou em voz baixa, havíamos passado por vários lugares, e em uma dessas paradas, eu encontrei essa barra em uma das prateleiras tomadas por ervas trepadeiras e poeira, segundo a data de validade, ainda estava boa, Collins me viu colocando na mochila, e me fez um sinal de "segredo" quando estávamos na trilha. Se hunter soubesse eu estaria morto, ele dizia que só levaríamos o estritamente necessário, pois Katy não podia levar mais peso que algumas roupas, e eles não poderíamos sobrecarregar outros de nós por coisas fúteis "É só um chocolate, pelo amor de Deus" foi o que passou em minha mente enquanto eu observava a alegria da garotinha abrindo a embalagem descolorida e mordendo o pedaço esbranquiçado da barra.
Os dois soldados conversavam, de longe parecia uma discussão, enquanto chegávamos mais perto, pude perceber que pararam imediatamente, e continuaram seus afazeres. logo começou anoitecer, Hunter acendeu uma fogueira, Collins entregou os sacos de ração para mim e para Katy — Caras, esse pacote está pela metade... — Collins me olhou, seriamente e disse — Estamos racionando, garoto, não podemos exagerar, ou ficaremos sem — Hunter, levantou-se pegou um galho que havia feito uma ponta, e entrou no breu da floresta — Hey, Hunter você e o Collins não vão jantar conosco? — perguntei, ele apenas acenou negativamente e entrou na floresta, olhei para Collins procurando uma explicação — Nós já comemos garotos, aproveitem a refeição, eu vou ficar de guarda essa noite... — eu olhei para o soldado visivelmente exausto — Collins, por que o Hunter não fica de guarda? Essa é a quarta noite seguida que você fica de guarda, e ele... — Collins me olhou, repreendendo com olhar, fez um sinal para que continuássemos nossas refeições e fossemos para barraca quando prontos.
Era madrugada, levantei-me como de costume, nunca mais consegui pregar uma boa noite de sono, não desde o centro de refugiados, e da casa da titia, bom... na verdade eu não durmo direito desde que esse pesadelo começou. Eu observo Katy dormindo tranquilamente, o que me dá uma sensação estranha de alívio e preocupação, "Estamos sozinhos, ela depende de mim para mantê-la a salvo" foi o que passou e meus pensamentos naquele momento. Um barulho veio de fora, eu espiei pela barraca, os soldados estavam animados e comendo em volta da fogueira, "DESGRAÇADOS! Estavam nos fazendo racionar comida, enquanto dormíamos passando fome, eles estavam comendo tudo que temos de reserva!", meus olhos lacrimejaram de ódio. Deitei ao lado de Katy, amanhã eu e ela nos despistaríamos dos dois. Provavelmente eles querem nos entregar para o General e receber algum tipo de recompensa por nos levar a salvo.
Hunter e Collins estavam acordados, provavelmente não haviam dormido aquela noite, havia uma estrutura estranha cheia de folhas em cima da fogueira, nunca havia visto algo assim, muita fumaça e cheiro de mato verde queimado. Hunter me cumprimentou com a cabeça, eu ignorei. Collins olhou para seu superior e deu de ombros. Katy levantou cedo, eu estava arrumando nossas coisas, quando o Hunter se aproximou de nós dois — Vamos lá crianças, hora do café... — ele colocou a mão em meu ombro, eu rispidamente sai do alcance — Eu não sou uma Criança. Comam vocês dois, eu e minha irmão não precisamos de nada vindo de vocês — Hunter ficou perplexo, Collins chegou na conversa, olhou para o comandante e depois para mim— Billy, é por causa da ração, não é mesmo? Hunter, se você não contar a ele eu contarei... — Hunter assentiu com a cabeça, me olhou nos olhos — Você e eu, agora siga-me — Collins me olhou e levou Katy no colo para perto da fogueira, deu a ela um pedaço grande de alguma coisa e uma caneca morna, primeiro eu fiquei desconfiado, mas logo que ela começou a sorrir depois do primeiro pedaço e Collins me olhou diretamente no olhos, eu entendi que ele não faria nada que prejudicasse Katy. Hunter estava longe, ele parou e olhou para trás — O que você está esperando? — disse ele num tom que eu pudesse ouvir. Deixei minha irmã com a única pessoa confiável naquele momento.
Hunter limpava sua pistola automática, quando cheguei — Nossa, que clássico, agora que me tirou de perto da minha irmã, vai atirar em mim... — Hunter investiu contra mim furioso — CALADO! Tudo que Collins e eu fizemos foi para proteger vocês dois, eu nem lhe conheço! — fiquei assustado mas mantive meu pulso — É eu vi, vocês comendo as provisões e minha irmã e eu dividindo rações e dormindo famintos! — Hunter baixou a cabeça, me olhou novamente — Billy, você não é mais uma criança, então tem direito de saber a verdade... há duas semanas que Collins e eu não comemos as rações, tivemos de tomar essa decisão para que vocês pudessem sobreviver... essa noite, eu consegui achar caças, os animais parecem estar desaparecendo... ou algo assim, enfim essa foi a primeira vez em semanas que fazemos um refeição descente, e consegui bastante carne, fiz umas carnes defumadas para nós e... — baixei minhas cabeças e as lágrimas escorriam pelos cantos, como eu podia ter julgado aqueles dois soldados, que arriscaram suas vidas para nos salvar, nossos protetores, nossos amigos... não conseguia olhar para Hunter. Ele se aproximou de mim, pôs a mão em meu ombro e disse — Desculpe por não te contar, você não é uma "criança", mas Katy é. E ela precisa do seu irmão forte e preparado e em harmonia com o grupo — aquelas palavras me deram força, pedi perdão ao meu amigo, e retornamos ao acampamento.
Chegamos no acampamento, não vimos Katy ou Collins. Hunter olhou nas barracas, nada. Quando pensei em gritar pelos dois, vi Hunter cair de joelhos no chão, espuma saindo pela boca, ele em um esforço disse "Corre..." mas logo senti uma pressão no pescoço, a visão foi ficando turva, senti as pernas mais fracas, no meu campo de visão, várias figuras saíram de trás das árvores e moitas, mas uma se dirigiu diretamente para mim. Com a cabeça zunindo e o copo estirado no chão, eu vi uma embalagem descolorida cair a minha frente, e logo seguida a voz disse — Sua mãe não lhe ensinou que nunca se deve comer a sobremesa antes do jantar?
Senti a pressão aumentar em minha cabeça.
Collins e Katy estavam amordaçados, Hunter estava inconsciente. O que estava acontecendo?
"É só um chocolate, pelo amor de Deus"
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SANGRANDO POEIRA
Ficção Científica1° LUGAR - No Concurso SELLERS em FICÇÃO CIENTÍFICA 5° LUGAR - No Concurso SAKURA em FICCÃO CIENTÍFICA "Tudo e todos se dirigem para o mesmo fim: Tudo vem do pó e tudo ao pó retorna" - Eclesiastes 3:20 *** Em mundo devastado pela Guerra do Cata...