XXII. San Martin

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Dirijo-me ao portão carregando minhas coisas, o arco de caçadora e aljava de Raja pendurados em minha mochila, escuto uma voz conhecida cochichar em meio a multidão — Psssst! Psssst! Andarilho, sou eu, aqui, olhe na barraca...— era Boten, o vendedor de sucatas, o mesmo que havia vendido a pistola 9mm para Raja em troca de um rádio sucateado, o mesmo que havia entregado Raja a Legião, distraindo-a enquanto os legionários a sequestravam, a descrição de Morgan batia exatamente com o perfil dele, chego perto da barraca — Me dê um bom motivo para eu não lhe matar aqui mesmo... — Boten começa rir nervosamente — Você deixou eles levarem minha parceira... — digo com fúria no olhar, Boten coloca-se de joelhos a minha frente, implorando aos soluços — Por favor! Boten ter esposa, ter filhos, Boten não ter escolha, Legião matar Boten e família se Boten não ajudar... — controlo minha raiva, descontar naquele infeliz não faria que tudo se desfizesse, o que estava feito, estava feito. Faço um gesto para que o comerciante se levantasse, ele me agradece.

Em sua barraca, ele me mostra um revolver antigo, tambor com 6 tiros, danificado. Eu olho para ele, não havia chance de eu perder tempo com aquilo, me viro e vou deixando a barraca, sigo meu caminho, quando ele me pede — Por favor andarilho! Boten precisa arrumar arma dos antigos para trocar por água... Filho muito doente... — eu paro, suspiro — Eu não tenho tempo para isso, é seu problema, não meu —  ele põe na mesa algo pesado, de so metálico, me viro para olhar, era um facão da Legião, eles chamam de Gladius, somente os melhores guerreiros legionários tem uma arma daquelas, consiste na lâmina de duas machetes soldadas espelhadas, um cabo de madeira enrolado em borracha, a parte inferior era serrilhada e a superior com um fio liso — Só isso mercador? Me convença... — tento extorqui-lo um pouco mais, já havia deixado-o o viver, ele pode afirmar com certeza que está ganhando nessa negociação, Boten estreita os olhos, mas o desespero fala mais alto — Boten lhe dá a lâmina legionária, com a bainha e mais 10 cartuchos de arma sua, pegar ou largar Andarilho... —  eu teria arrumado só pelas munições, mas ele nunca saberá disso.

O cano da arma estava entupido, o parafuso da espinha do tambor quebrado, dentro do tambor também haviam duas munições deflagradas que estavam emperradas. Com a ajuda de algumas facas finas e arames eu consegui limpar a arma, o parafuso substitui por um muito parecido usando o mesmo rádio que Raja negociou com ele antes, como o revolver é uma arma de fogo com a mecânica muito mais física e simples, eu sabia que ele estaria funcionando, não perfeitamente, mas ao menos dispararia as balas na direção certa. Tudo pronto. Pego a espada, coloco na bainha, as munições no bolso de minha calça. Um cinto da bainha permitia que eu usasse tanto na cintura quanto nas costas, preferi usá-lo nas costas, não sabia exatamente o por que, mas sabia que eu já havia treinado com uma arma de peso e ação similar. Boten me agradece, e me entrega um antigo sinalizador marítimo — Você bom negociador, Boten gostar disso, esse ser bônus... — eu podia ver que o mercador estava arrependido do episódio com Raja, agradeci a ele e deixei-o entrar na fila do Mercadores de Água. Agora eu deveria estar em melhores condições, não sabia o que encontraria a caminho do Hospital.

O Sol da Vastidão estava começando a se intensificar, era cedo da manhã, ainda estava fresco mas logo chegaria ao seu ápice. Os guardas dos portões abrem caminho e me desejam boa sorte, naquele tempo em que estivemos ali as coisas mudaram bastante depois de conquistarmos a confiança de Morgan.

Ando em direção ao leste, a procura dos rastros de Cougar, algumas Rapinas sobrevoando em círculos sob a minha cabeça. Aves malditas, pareciam uma mistura entre um falcão, um abutre e um rato, um animal de fisionomia bem estranha, até mesmo para os padrões dos ermos. Caminho por cerca de meia hora e vejo ao longe um figura caída sob areia, me aproximo com cautela, afinal já havia caído uma vez nesse truque do "andarilho morto", os Carniceiros costumavam se enterrar na areia e aguardar por viajantes desatentos se aproximarem para pilhar o corpo, então atacavam, geralmente acabava na morte do saqueador.

Começo a perceber traços familiares, era Cougar! Ele estava desacordado, aperto o passo duna a baixo e acabo tropeçando em um banco de areia, vou rolando até o assento da duna e me levanto sacudindo as roupas. Ele estava desidratado e parecia pouco consciente, pego uma de minhas garrafas na mochila e faço-o beber um pouco de água.

Cougar me olha no fundo dos olhos, parecia agonizar, ainda assim ele aponta uma direção — Vamos lá garoto, vamos buscar Raja... — digo a ele, eu não havia percebido ao tê-lo posto em meu colo, mas não era somente a desidratação, o menino tinha um corte profundo da barriga rasgando até o peito, marcas de hematomas, de alguma forma, eu sabia que ele não havia chegado ao hospital, ele foi emboscando, torturado, mas em troca de quê? Um clarão vindo sol que se escondia atrás das nuvens me fez refletir — A Legião... eles estavam me procurando... — olho para Cougar que começa a sangrar, as lágrimas em seus olhos, eu não conseguiria levá-lo há tempo para Morgan, e não poderia levá-lo comigo.

As Rapinas sobrevoavam as nossas cabeças, gralhando ferozmente. Sinto uma escuridão dentro do peito, não havia escolha. Cougar segurava a dor cerrando os dentes, as lágrimas corriam pelos cantos dos olhos e o sangue melava a areia, o que mais me assustava, era que ele entendia o que eu precisava fazer. Peguei minha pistola. O som das Rapinas gralhando abafou meu tiro, Cougar se foi. Levanto-me — Você será vingado... — deixo o pequeno corpo deitado na areia, me distancio enquanto escuto o som das Rapinas se alimentando, malditas sejam, cada osso partido soava como a morte de um legionário em minha mente.

Ando no deserto por meia hora na direção apontada por Cougar. Ao longe enxergo um grande edifício, semi enterrado na areia, no topo do prédio posso ler em letras de ferro corroídas e enferrujadas "HOSPITAL SAN MARTIN" ali estava, poucos metros a minha frente. Um ronco de motor enfurecido quebra o silêncio do vento na Vastidão, eram os carros da Legião, pude contar 3 carros ao menos, um deles já estava parado na frente do Hospital, achariam Raja e a fariam contar minha localização. Eu precisava agir rápido.

Eu observo uma Rapina voando sobre a minha cabeça, não era um bom sinal.

O sacrifício de Cougar não será em vão. Eu salvarei Raja e farei os legionários pagarem. Um a um. Me esgueiro na areia, mantendo uma distância segura. Preciso entrar no prédio sem ser visto. O vento parou de repente, abrupto. Aquilo significava uma coisa apenas. Haveria chuva na Vastidão.

Eu observo a Rapina voando para longe no horizonte, agora sim. Aquilo era um mal sinal.  

SANGRANDO POEIRAOnde histórias criam vida. Descubra agora