Capítulo 2

57 3 26
                                    

Com um pedaço de graveto, Soren transpassava sua ponta nas penas amarronzadas de Hain, fazendo-o gemer de incômodo. Ao mesmo tempo, os dentes do menino trincavam com o frio que lhe subia através das pernas mergulhadas na água. As asas do garoto se erguiam um pouco acima da cabeça, e se curvavam pelo ombro. À frente deles, uma cachoeira descia como um véu por entre um conjunto de rochedos altos, e suas águas caíam violentamente na piscina logo abaixo. A volta da margem as árvores se alteavam com as cores escondidas pela noite.

-Eu disse Hain, eu disse "não brinca com gato do mato", não adiantou né? Olha o tanto de piolho que você tem! Se sua mãe ver isso ela te esfola! - dizia seu pai.

-Runa não tem pulgas e nem piolhos! - protestou Hain, mal-humorado com todo o tratamento que estava recebendo. De vez em quando Soren tinha a sorte de observar entre as penugens do filho algum hospedeiro minúsculo e indesejável, e por fim o matava estralando o inseto nas unhas.

-Por isso mesmo, vai encher o gato de bicho! - dizia com a voz brincalhona e o olhar ainda sério.

-Ei! - protestou o garoto e Soren se deixou levar pela gargalhada. Decididos a terem apenas Hain, já tinham trabalho suficiente somente com ele. O garoto brincava distraído com a água, balançando as mãos enquanto enchia Soren de perguntas.

-Pai, por que estamos aqui?

-Não gosta desse lugar Hain?

-Gosto, mas é que só tem a gente. Não tem nada para fazer, e nem brincar com os bichos você deixa! E tem essas árvores pegajosas...

O mau humor de Hain era nítido à Soren. Como um menino sem outras crianças para brincar poderia se adaptar num lugar desconhecido? Seu desejo de tornar aquela ilha em um lar para sua família e seu bando, era forte como o medo que o trouxe até ali, gostaria que seu menino pudesse entender.

De repente tomou consciência de que também tinha frio. Respirou fundo e jogou o graveto de lado. Passou a mão sobre algumas penas desalinhadas do filho e as ajeitou. Estavam molhadas. Se Hain fosse um pouco mais velho poderiam retornar voando. Isso unido ao fato de sua mulher ser humana havia dificultado a viagem de seu bando. Sólon era quase um irmão para Soren, lhe ajudou mais do que qualquer um na vinda para ilha, carregando inúmeras vezes Fath no colo. Também não havia entre eles alguém tão forte quanto seu amigo. Ficou feliz ao saber que sua mulher estava grávida, e mais ainda quando pediu para ser o segundo pai de sua criança.

Hain também tivera segundos pais, o casal Igor e Siv que desapareceram do bando. Voavam três dias seguidos na fuga, sem ver nenhuma ilha para o pouso, perdidos no oceano infindo. Naquela ocasião, quando olhou para trás na formação, os dois haviam desaparecido. Talvez tivessem caído nas águas, vencidos pela fadiga e fome. Morreram sem nenhuma canção de luto para que suas almas fossem levadas para Dorah. Quando chegaram no templo, Soren conseguiu finalmente despedir seus amigos, a deusa aceitaria o rito tardio dada as circunstâncias.

Restaram tão poucos, porém tão bondosos em seu bando. Solón e sua esposa logo mais se tornariam um exemplo para empolgar os demais a ter filhos. Se Dorah os agraciasse com uma menina, Hain teria uma esposa na idade certa para o enlace.

-Filho, tem uma coisa interessante sobre essa ilha.

-É? - o garoto ficou interessado. - O que?

-Ela não é uma ilha, sabia?

-Não? Então o que é?

-Se lembra daquele animal lento com a casca nas costas que te mostramos esses dias?

-Sei! Tartaruga!

-Isso! Você não vai acreditar Hain, mas isso aqui tudo é uma grande tartaruga gigante! E nós moramos no casco dela!

Os MutiladosOnde histórias criam vida. Descubra agora