Quando Alfarir deixou a biblioteca, seguiu direto para a sala de fumo através de um corredor largo e curto à direita de onde o corpo de Syd jazia. As paredes daquele cômodo eram ornamentadas com dois pares de tochas apagadas ao lado da arcada da sala. Com a pedra fogo no bolso, ascendeu as duas e mais um candelabro numa mesa redonda e pequena à sua esquerda. Pode enxergar o local em sua totalidade. Não que o escuro fosse algum problema para sua visão, muito pelo contrário, era no breu que o malaki estava em vantagem. Porém não lhe era prazeroso enxergar nitidamente tudo em escalas de cinza, e aquele lugar era particularmente o mais colorido da casa.
Havia no centro sofás e almofadas com franjas douradas e estofados em cores vivas. No centro uma mesa de pernas curtas com um conjunto de cachimbos e potinhos com ervas para o fumo. O lugar era espaçoso, de tal modo que o meio parecia uma pequena ilha. Ao redor estava uma coleção particular da qual Kadima se orgulhava. O local servia para reunir a escória de adestradores, precisava desses objetos para dar ares de importante.
Alfarir olhou ao redor, sentindo nas costas uma pontada de dor fantasma. Vinte pares de asas pendurados pelas paredes, vinte amputações dolorosas. Vinte malaki privados de sua natureza. Era como se Kadima colecionasse partes de cadáveres. Suas sobrancelhas se uniram em penitência. Cada uma pertencia a uma tribo diferente, algumas das quais o malaki não fazia ideia que existissem. Quando ainda sendo adestrado pelo homem, o alado sentia um misto de medo e admiração por aquele local.
Andou em direção à parede de frente à arcada, seus pés fazendo barulho com o chão polido de pedra, que foi abafado ao pisar no tapete no centro. Conforme se movia, as sombras dos móveis se elevavam nas paredes, e criavam formas monstruosas. Seu coração estava apertado. Quando chegou no destino, elevou seus olhos encontrando o objeto mais exótico daquela coleção. Por um momento seus olhos lacrimejaram.
As asas se estendiam na parede, como gigantes avermelhados. As penas eram num tom carmesim, que desciam até as pontas para adotarem uma coloração forte e brilhante, fazendo parecer que eram feitas de cobre. O par parecia uma coisa viva, suas cores brilharam com a aproximação da luz. Com mais de dois metros de altura, dobradas entre as junções do úmero e o rádio, elas deveriam pertencer a algum povo de estatura alta. Reconheceu a fôrma de rapina, e sua mente desenhou o dono daquela peça como um alado tomando altas altitudes das correntes termais. Ou uma alada. A beleza que havia em sua mente ao desenhar o voo seus irmãos de asas avermelhadas, o fez se perguntar o motivo de tudo aquilo. Por que caçariam e mutilariam seres assim? Qual a finalidade dessa merda toda?
Diante daquele sentimento que lhe dominava, seus olhos encontraram o segundo par de asas, ao lado do avermelhado. Ficou próximo o bastante para deixar os dedos acariciarem a penugem amarronzada daquele par de malaki falcão. Sua memória encontrou o dia em que foram arrancadas das costas de seu irmão. Ajoelhou e começou a chorar. O candelabro quase caiu de suas mãos.
-Alfarir. – Uma voz feminina veio da escuridão. Sacou rapidamente a adaga, e olhou para o canto esquerdo da sala. Três figuras acuadas no canto em abraço, escondidos entre duas mesas, com os olhos amendoados arregalados em susto. Um homem e um rapazola alados com penas brancas, e uma mulher bem vestida e mutilada. Respirou em alívio. Entrou nervoso demais naquela sala para os ter percebido escondidos.
-O que fazem aqui, Aisha?
A mulher ergueu-se. O corpo delineado para ser desejado, ressaltado pelo tecido fino do vestido azul que usava. Os cabelos caiam em cascatas brancas e onduladas até a cintura fina e a pele escura do busto convidava seu olhar para o colar de prata e peridotos. O homem que o dera provavelmente foi Kadima. A aparência dos outros dois era parecida, Aisha com seu marido e filho se escondiam do pandemônio do lado de fora.
-Ficamos com medo – respondeu, preocupada. – Quando mais de vinte guardas gritam no lugar dos escravos, significa que estamos em apuros.
-Eu não fazia ideia de que voltaria. – disse o homem alado, esposo de Aisha. Ficou de pé e Alfarir percebeu que suas asas estavam retalhadas.
-Tentou fugir, Jonas? – perguntou Alfarir.
-Tentamos. À mais ou menos um mês. Fomos castigados. - levantou o pé, com um sorriso constrangido e triste. Alfarir viu o dedo mindinho lhe faltando. Rangeu os dentes.
-Bom, isso explica o que fizeram com suas asas. Kadima deve estar pior depois que descobriu essa merda na terra dele. – disse Alfarir.
-Ele nem tanto, Syd é quem virou um demônio. Aliás, se está aqui significa que o encontrou certo? – Perguntou Jonas.
-Sim, encontrei, e fiquem em paz, pois já dei um fim no demônio.
O malaki retalhado balançou a cabeça, seu semblante não guardou felicidade ao saber da morte de seu amo.
-Há outros como ele, ou piores, meu amigo. Se sairmos daqui, encontraremos outros grilhões. Essa semana Kadima recebeu tantos senhores, que se tivéssemos poder, os trancaríamos de uma vez só e mataríamos a todos. Mesmo assim, não sei se resolveria nosso problema. Nossos irmãos que estão livres já se foram para longe.
Alfarir ficou em silêncio, seu pensamento trouxe as memórias dos dias que os seus viviam na fenda de Nadab, escondendo-se nos penhascos. Chegaram com a maldita gaiola que parecia ser movida a magia ruim, as redes se enrolavam nos corpos dos malaki que não conseguiam a tempo alcançar as correntes térmicas. As tribos que não eram de rapina, então, foram alvo mais fácil, assim como Aisha, Jonas e seu filho Daud, que tinham asas pequenas demais para voarem tão alto. A desesperança de seu amigo era justificável.
-Ora! Eu aqui choramingando quando Balsan ouviu minhas orações e te mandou, seu malaki teimoso. – Jonas deu um forte abraço no falcão. Alfarir sorriu deixando se levar pela gratidão do amigo. Aisha estava a ponto de chorar ao vê-los assim.
-Eu queria poder encontrar sua tribo, Jonas. Mas posso pelo menos tirar vocês desse lugar. – Se afastou do malaki - Me ajudem numa coisa antes de irmos?
Eles anuíram com a cabeça. Observou o rapaz. Tanto tempo que não via o filho de Aisha, e então de repente, era um homem já crescido. – Precisamos pegar algumas coisas antes de ir. Armas, objetos menores de valor. Não muito por que vamos caminhar pelo deserto. Roupas principalmente. Vasculhem a sala enquanto eu abro o arsenal de Kadima.
Retornou à frente do par de asas rubros. Colocou a mão por debaixo das penas, apalpando a parede cor de areia. Encontrou uma alavanca, a girou e puxou. Do lado da porta que entrou, um rangido foi ouvido. Seguiram para a saída, iluminando o batente com o candelabro. Havia uma mesa de descanso colada à parede. Pediu para Jonas empurrá-la, e para a surpresa de todos, menos de Alfarir, havia uma abertura ali.
O malaki a iluminou. Era o metro quadrado mais abarrotado de armas que já viram. Facas, adagas, cimitarras com ornamentos. Retiraram o máximo que puderam, e Alfarir fechou novamente o local. Depois seguiram para os quartos para pegar o máximo de roupas que conseguissem, carregando sempre coisas leves. Encontrar os três foi imprescindível.
Seguiram para fora do jardim. Alfarir viu os olhos dos três malaki que acompanhava postos sob o alojamento em chamas. Alguns corpos carbonizados jaziam no meio do pátio, em posições agonizantes, como se o morto tivesse tentado apagar o fogo rolando sobre a areia. Alfarir ouviu a respiração de alguns feridos dentro do barracão, prosseguiu na caminhada sabendo que logo mais morreriam.
O portão dos fundos, já estava escancarado. Passou pelo portal aliviado. Jamais teria que voltar para aquele lugar.Olá leitor! Como você está? Espero que sua leitura tenha sido prazerosa ^^
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Os Mutilados
FantasyHain e sua tribo fugiram voando da perseguição que sofriam no Continente de Cima. Com suas asas admiradas como artigo de luxo, suas mãos desejadas para o trabalho escravo e seu sangue precioso para realização de rituais, os olhos dos adestradores, c...