Os olhos apurados de Hain varriam a imensidão do sul do Deserto de Malth. Mais adiante, a cadeia de montanhas que protegiam Talathan, sombreava numa linha extensa a planície impedida de agarrar-se ao céu. Uma faixa de vegetação árida, com palmeiras e aroeiras, destacava essa divisão longínqua. Ao focar sua visão em pequenos pontos abaixo de si, o malaki via brotar entre rochas siliciosas tímidas gramíneas agudas de coloração verde-apagado, salpicando a cor arenosa daquele pedaço de mundo seco. Enquanto tudo naquela paisagem parecia inóspito, viu surgir algo que lhe conferia ares de vivacidade. Como um borrão acanhado no meio daquele panorama desolado, a propriedade de Ealim ia ficando cada vez mais perto enquanto o grupo de Hain avançava à passos cansados, com o sol lhes ferindo a tez.
O casal de cães caminhava com as bocarras abertas. Desolado, Haris puxava as rédeas do par de camelos vagarosos, cujos dorsos suportavam os pertences de seus donos. Ao lado de Hain, Altaíbe mirava a paisagem com a profundidade de seus olhos verdes envoltos nas rugas de sua pele morena. Uma barba grisalha escondia sua boca pouco dada a sorrisos.
Quando a propriedade ficou próxima, as baixas montanhas onde Ealim extraía ferro ficaram visíveis, e um caminho de pedras arenosas indicaram o portão da murada baixa que guardava o resto da propriedade. Sobre a casa, uma torre avultava-se acima do muro. Embora seus olhos estivessem cansados pelo uso contínuo de suas habilidades, e sua cabeça doesse, observou com cuidado os três patamares da torre e a cúpula amarela em seu topo. Porém, foi no primeiro andar nas silhuetas de dois homens que olhavam através da janela ampla, onde o malaki manteve-se mais atento. Estreitando as pupilas para controlar os raios solares que lhe vinham em demasia, a imagem da janela foi ampliada.
Um dos homens carregava uma barba no rosto amendoado, e o outro possuía um par de asas curtas, na coloração alvinegra das andorinhas. Viu o alado ajeitar a túnica cinza com pequenas faixas marrons, e pular do beiral da janela. Hain acompanhou sua queda livre até perdê-lo de vista, quando seu corpo suspenso no ar, foi recoberto pelo muro da propriedade.
Voltou a rever a estrada logo abaixo de seus pés até perceber que Altaíbe o fitava com curiosidade.
-Viu alguma coisa garoto? – perguntou Altaíbe.
-Sim. Ealim mandou seu mutarabi nos receber. – respondeu ao mestre.
-Bem, serve pelo menos para passar recado. – No fundo a voz de Haris se fez parecer. O homem de aparência comum, com o nariz curvilíneo acima de uma barba espessa e negra, era um dos guardas de seu amo e o adestrador dos cães. – Fiquei sabendo que é uma andorinha.
-Ealim fez uma escolha estranha de mutarabi – disse Altaíbe. – Ainda bem que seu pai está morto. Se visse isso, iria arrancar cada pena da andorinha pra castigar o filho.
-Pelo menos sobra mais trabalho pra gente. – Haris parecia amar aquele tipo de trabalho. Estar longe da fazenda de arroz e caminhar além do deserto era para ele uma diversão incalculável. Principalmente quando precisava tirar a vida de qualquer coisa que atrapalhasse o ofício do grupo. A morte vinda nas mãos de Haris era sempre acompanhada de seu sorriso.
Altaíbe olhou adiante e ficou um tempo em silêncio, compenetrado – Estou ficando velho pra esse tipo de trabalho – disse por fim seu amo e Haris nada respondeu. A velhice era uma verdade que seu mestre tentava esconder. De quando em quando, Hain o observava segurando as caretas de dor de seu joelho inflamado, quando mancava estalando as juntas.
De repente algo sombreou o topo das cabeças do grupo, e desceu pela parte da estrada que haviam deixado para trás. A areia circundou o pouso rápido do malaki. Pararam a caminhada para encará-lo. O adestrado de Ealim os cumprimentou com formalidade exagerada, colocando as mãos sobre o coração e curvando-se quase no chão. A sua pele era clara, e os olhos em contraste, negros como as penas de um corvo. A voz do mutarabi saiu fina, como um assobio de uma cotovia.
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Os Mutilados
FantasyHain e sua tribo fugiram voando da perseguição que sofriam no Continente de Cima. Com suas asas admiradas como artigo de luxo, suas mãos desejadas para o trabalho escravo e seu sangue precioso para realização de rituais, os olhos dos adestradores, c...