Hain correu tanto que mal sabia onde estava. O pânico se somava ao sentimento de vergonha por ter deixado o pai para trás. Um pedaço de bosta, de coisa nenhuma, era como se enxergava naquele momento. Em nada isso se podia comparar com as histórias que imaginava em suas brincadeiras, não haviam árvores gigantes. Nem monstros imaginários. Suas pernas já doíam enquanto seu corpo tentava escapar dos troncos das árvores fechadas. Seguia no sentido do nascer do sol, ansioso por encontrar ajuda.
Desviou dos galhos pelo chão, seu corpo suando frio, era uma mistura de pesadelo e medo. Segurava o mijo a cada passada veloz. O único medo que conhecera era de apanhar de sua mãe, agora parecia que toda apreensão de todas as surras de Fath se acumularam em uma noite apenas. Aquilo era loucura demais para uma criança aguentar.
A passada dos caçadores ameaçava suas costas. No início da perseguição fizeram barulho demais, gritando "peguem o pequeno animal". Depois pararam de gritar. Tentou voar algumas vezes, mas suas penas ainda estavam pesadas com a água, e as árvores fechavam demais o espaço para tentar algo assim. Detestava aquela floresta que parecia mais uma gaiola para os malaki. Deveriam ter ido para algum lugar montanhoso, construído casas nas árvores para se jogarem do alto e alçarem voo na queda.
A lua se escondia entre nuvens, o que lhe era uma vantagem, sua visão o ajudava a enxergar no breu à sua frente. Nunca conseguiu explicar isso, mas acontecia, as coisas criavam formas nítidas em escalas de cinza, e todos os objetos de noite pareciam mais vivos do que no dia. Era engraçado quando conseguia inclusive ler algumas letras. Agora, o que lhe era uma característica de graça tornou-se uma arma para sobreviver.
Os caçadores estavam longe, suas vozes cessaram, o barulho que faziam ao pisar nas folhas também. As árvores corriam através de seu corpo, para trás, enquanto o medo o deixava absorto até mesmo para perceber que se movia. Será que era assim que a alma deixava o corpo: você já não se torna capaz de identificar a realidade, e nem sua própria matéria?
Estava próximo do templo quando viu duas mangueiras irmãs que se alteavam na floresta. O chão ficava escorregadio com os frutos que caiam maduros, aromatizando o ar. Noutro momento seria bom ter passado por elas, pegar uma fruta para mastigar distraidamente. Depois que aquilo acabasse comeria todas as mangas que coubessem em seu estômago.
Encontrou as estátuas de Dorah e pela primeira vez elas lhe deram paz. Soltou o corpo aliviado durante poucos segundos, como se sua parte em salvar seu pai já tivesse quase feita. Agora encontraria Sólon para pedir ajuda, era forte para um malaki, tinha um bom olho para cuidar do arco, e sua mulher era também muito capaz. Eles saberiam o que fazer.
A sensação de alívio não durou muito. Paralisou com a visão que delineava diante de seus olhos.
Cada malaki, um ao lado do outro, com os pés amarrados às cordas, de barriga para baixo, comendo a terra que aguavam com as próprias lágrimas. Estavam de frente para o templo enquanto um homem estranho e enorme passava por cada malaki com uma faca em mãos, cortando as remégides secundárias de uma de suas asas. Hain viu, os retalhos das penas caírem devagar, pairando tristes no ar e marcando o chão. Quando caía nos pés do caçador, ele agitava o membro de lado, para se livrar daquelas coisas repugnantes de malaki. No face do agressor, perto do nariz, de cada lado, uma linha reta tatuada até sua orelha retirava qualquer contorno daquela parte de seu rosto. A cor da pele do homem era escura, como a sua própria. Os escravistas do sul encontraram finalmente os malaki.
Havia outro de pé, observando atento o trabalho sendo feito. Era magro e de cada lado do rosto três linhas se estendiam, da largura de seu dedo mindinho. Na cabeça o cabelo escuro e ondulado estava preso num coque. Sua roupa feita por uma camada de algodão cru, e suas calças estavam presas á pedaços de couro que desciam da cintura e se prendia às botas do mesmo material. Vestia colete com pelugem de algum animal estranho, marrom com manchas escuras.
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Os Mutilados
FantasyHain e sua tribo fugiram voando da perseguição que sofriam no Continente de Cima. Com suas asas admiradas como artigo de luxo, suas mãos desejadas para o trabalho escravo e seu sangue precioso para realização de rituais, os olhos dos adestradores, c...