Capítulo 1

57 2 4
                                    


Dedicado a AndrzejPietrzak e maveoliv

______________________

Foi por volta da meia noite que Alfarir e seu grupo chegaram nas terras de Kadima. A fronte da propriedade era resguardada por um conjunto de colinas que se abriam para uma trilha de pedras. Ali jaziam os corpos de dois guardas que por azar encontraram os assaltantes - as primeiras mortes da noite. Depois do feito, o falcão dobrava seu corpo sobre o pico de um dos rochedos, ficando tão alto quanto as torres que protegiam aquele lugar. O malaki, mergulhado em concentração, observava com atenção o movimento dos guardas.

Em noites anteriores, quando o luar se escondia da abóbada celeste, Alfarir sobrevoara a região, estudando os turnos dos vigias. Calculou cerca de quatro horas para realizar o assalto, até que dessem falta dos companheiros mortos. Escolheu outra noite escura para sua façanha. A iluminação que ainda persistia, provinha dos archotes espalhados pelos muros e por dentro da propriedade. Não havia vento, nem movimentação abaixo da colina que não fosse de um guarda.

Alfarir deixou sua mente vasculhar as lembranças de seu passado, quando ainda vivia como adestrado de Kadima. Comparava as mudanças que seu antigo senhor fizera em sua propriedade, depois da descoberta das minas de peridoto, além das margens do Thal Tavaim que seguia por detrás do portão dos fundos.

Antes, o acesso ao casarão principal era desprotegido, contendo apenas o Pilar do Sino à sua frente. Agora, ele construíra uma murada retangular de sete metros de altura, com um portão de madeira guardado por cinco homens. Os vigias andavam de maneira preguiçosa nos entornos do pilar, vestindo fardas carmesins numa cópia pitoresca dos soldados do Rei Sá AlGorab.

O outro acesso se dava pelo portão dos fundos, cortando o muro principal de dez metros de altura que abraçava a parte detrás da mansão. Era justamente ali que os escravos saiam para o árduo trabalho nas minas e nos campos de arroz nas margens do rio. Seus pés eram proibidos de pisar por dentro da mansão do senhor, mesmo nos dias de descanso, quando os joelhos se dobravam diante do Sino da Morte para as preces à deusa Mirina. Apenas ele, o adestrado, e alguns servos escolhidos para viver dentro do casarão, poderiam cruzar a casa para a entrada. Nessa ocasião, quando Kadima ainda não tinha o peridoto, Alfarir preferia sobrevoar a mansão do que adentrar suas paredes. Não conseguia conceber que esse seu direito não fosse dado aos demais escravos.

Afastou as memórias como quem afasta uma mosca incômoda. Desceu abrindo as asas para suavizar o pouso. Ao pé do rochedo, três homens ilheenses o esperavam, sua pele negra como a noite que os abraçava, os cabelos raspados e a roupa escura para camuflá-los no breu. Seguravam a adaga à frente do corpo, apreensivos, como se esperassem um ataque surpresa. Dois deles eram jovens e o outro já adentrava a idade para ficar em casa mimando seus netos. Seu nome era Bash, um homem corpulento e alto, carregando na mão direita a queimadura da marca de algum senhor.

O malaki se livrou da areia que acumulou na roupa, aprumou a máscara marrom escura usada para proteger o rosto do sol desértico. Permanecera com ela mesmo de noite para não ser reconhecido em caso de deixarem para trás alguma testemunha. Além do mais, o objeto lhe conferia valor estético, proporcionando à face um formato de ave rapina. Combinava com o apelido que recebera dos escravos e fugitivos que cruzavam o deserto: Falcão de Malth.

-E aí? - lhe perguntou Bash.

-Dois em cada mirante. - respondeu. Os homens carregavam em seu cinto facas e adagas, e apenas o grandalhão tinha um martelo de ferreiro para usar em caso de pancadaria mais séria. Atrás deles, insetos faziam balbúrdia entre algumas palmeiras e arbustos baixos.

-Se soarem o alarme, seremos empalados como faisões na brasa. - Concluiu o homem.

-Te acalma que cuido disso. Vou começar pela torre da frente, na esquerda, e depois passo pros fundos. Assim que for eliminando os mirantes, vou dando sinal pra irem pro portão.

-E as guaridas do pátio?

-Vazias.

-Esse tal de Syd é mesmo um grande imbecil. - Disse Bash, ficando nervoso conforme sua indignação aumentava.

-Dos grandes. Achou que um punhado de torres e guardas ia dar conta de tudo...

-Punhado de guardas? Punhado de guardas? Alfarir, somos três e um nanico.

-Eu não vejo nenhum nanico aqui. - Zombou Alfarir. - Eu vou matar muito mais do que vocês juntos. Aliás, sei que Syd gosta de economizar. É como um abutre procurando carne pobre pra não gastar suas novas. Pegou homens que mal sabem segurar a bosta de uma espada. Não deve ter treinado nenhum. - Alfarir riu. - Eliminando as torres o resto fica fácil.

-Tá falando dos quinze guardas no alojamento?

-Estou.

-Olha, se tirarmos os escravos em silêncio, sem acordar ninguém, nem precisamos nos preocupar com eles.

Alfarir ficou nervoso, respirou fundo puxando mais ar do que seu pulmão era capaz suportar. Pequeno em relação à Bash, o malaki se agigantou de repente.

- Esse seu coração mole vai matar a gente! Vai lamber os bagos deles também? Acha que quero quinze guardas cheirando nosso rabo no deserto?

-Tá certo. Tá certo. Só queria evitar a matança.

A pele morena em tons de bronze envolta da boca de Alfarir esticou-se em um sorriso largo. Seus olhos cintilaram uma alegria estranha. Era pequeno e furioso como os malaki das tribos dos falcões que um dia dominaram aquelas terras secas.

-Eu vim aqui apenas pra deixar um rastro de sangue, do contrário teria ficado no deserto espalhando comida. Eu queria ver Kadima voltando de Alkiba e vendo a merda que vou deixar aqui pra ele. - Olhou para o ombro do homem, fitando uma rocha, como se suas palavras estivessem projetando uma imagem sobre a sua superfície.

-Só quero ficar vivo depois disso tudo. Vou seguir como me mandou. Tome cuidado com as gaiolas. - disse o companheiro, apressado em vê-lo partir.

-Elas que precisam se cuidar de mim. - Disse o malaki e correu para alçar voo, levantando vento no rosto dos homens.

Olá leitor! Como você está? Espero que sua leitura tenha sido prazerosa ^^

Se gostou do que leu até aqui, bem, peço que dê um voto e que comente algo que te impactou. Fiquem à vontade em minha casa. Se acharem algo que precise ser apontado, por favor, ficarei feliz com uma crítica bacana. Como muitos, estou me construindo como escritora e sua opinião será sempre bem-vinda! Boa leitura!

Os MutiladosOnde histórias criam vida. Descubra agora