capítulo 1

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Rachel ia chegar atrasada no primeiro dia de trabalho, mas a culpa não era dela. A lavanderia da
Gull Street só abria às oito da manhã, e o gerente da Serviço Expresso de Arrumadeira insistia em que
seus uniformes estivessem sempre limpinhos, embora cada funcionária só tivesse uma troca. Ela
trabalhara até tarde na noite anterior, em uma festa de quadragésimo aniversário numa casa Sagitariana
em West Skye, e um retardatário embriagado havia derrubado acidentalmente um pouco de guacamole no
avental branco, após uma tentativa meio desajeitada de passar uma cantada nela.
– Ainda bem que está vestindo isso aí – dissera o bêbado, procurando disfarçar seu embaraço.
Ignorava que a jovem não poderia aparecer no dia seguinte na casa de um novo cliente com o uniforme
sujo. Após quatro horas de um sono agitado, ela havia saltado da cama antes que a lavanderia abrisse e
correra para lavar a roupa. Sentara-se diante da máquina e ficara olhando as peças girarem lá dentro,
enquanto o tempo voava, aproximando-se das nove – hora em que Rachel deveria estar na casa do novo
cliente.
Esperou o máximo que pôde, interrompendo então o ciclo de secagem, e foi para o banheiro da
lavanderia a fim de pôr o uniforme. Só percebeu como a roupa estava úmida quando o calor sumiu e o
vestido azul xadrez ficou grudado nas pernas, pegajoso e frio. Enfiou em uma sacola de plástico as
roupas quentes que havia despido e pegou um ônibus para Conway Heights. A cada minuto da viagem,
consultava o relógio. Quando viu que eram nove horas e ainda não tinha chegado, seu coração quase
parou. Não gostava de decepcionar ninguém. Era de Libra.
Conway Heights, um distrito elegante, ficava nos subúrbios ao sul de San Celeste. Rachel observava
distraidamente, pela janela, o desfile de quadras de tênis, árvores podadas e réplicas de vilas toscanas.
Tudo limpo e caro. Rachel se sentiu uma intrusa ali.
O ônibus parou na esquina da Morin Road. A sacola plástica de Rachel, estufada de roupas secas,
balançava de encontro às suas pernas enquanto ela subia correndo os três quarteirões até Eden Drive. As
casas por onde passava tinham todas jardins com palmeiras e canteiros de flores bem cuidados.
A casa do cliente de Rachel era uma ampla construção de um só andar, com paredes amarelas e teto
baixo. Foi preparando mentalmente uma justificativa enquanto avançava pelo caminho de cascalho até
chegar à porta principal. Estava prestes a pôr o dedo no botão do interfone quando percebeu a porta
entreaberta.
Bateu nela com os nós dos dedos, abrindo-a um pouco mais.
– Olá! – chamou. – Serviço Expresso de Arrumadeira.
Nenhuma resposta.
Uma lasquinha de madeira se projetava à meia altura do batente. Tocou-a. Tinha o comprimento de seu
dedo e estava perto da fechadura. A porta havia sido forçada.
– Olá! – chamou de novo, pressionando o botão. A campainha vibrou em algum lugar dentro da casa,
mas ninguém respondeu.
Rachel estremeceu dentro do vestido úmido. Recuou para a luz do sol e ergueu os olhos; em seguida,
pousou-os na estrada. Não notou sequer um sinal de vida ou som, exceto o de veículos distantes e cães
latindo.
Cerrou os dentes e tirou da sacola plástica o celular rosa e vermelho.
Alguém atendeu depois de dois toques.
– 911. Qual é o tipo de sua emergência?
– Alô? – disse Rachel, um pouco insegura. – Estou do lado de fora... hum... do número 36 da Eden
Drive, em Conway Heights. Acabei de chegar, e a porta está entreaberta. Ninguém respondeu quando
chamei.
Ouviu-se um leve tamborilar de dedos percorrendo um teclado, e a operadora voltou a falar. Sua voz
era simpática e calma. Havia certa cadência Libriana naquela voz, o que era tranquilizador.
– Certo. Estou mandando uma viatura. Seu nome, por favor?
– Rachel Wells.
– E a casa é sua?
– Não. Trabalho para a Serviço Expresso. Sou arrumadeira.
– Está bem, Rachel. Os policiais chegarão em oito minutos. Mas preciso lhe fazer mais umas
perguntas. Tudo bem, querida?
Querida? Libra, sem dúvida.
– Sim, claro! – concordou Rachel.
– Ok. Pode me descrever sua aparência, para que os policiais a reconheçam quando chegarem?
– Sim. Tenho 1,70 de altura. Cabelos loiros. Estou de vestido azul xadrez e avental branco. Isso é
suficiente?
Esperou, mas não houve resposta.
– Alô? – insistiu.
Por um momento, achou que a ligação tivesse caído. Ouviu, porém, uma voz distante. Afastou o
aparelho, mas continuou escutando o som. Um homem falava nas proximidades.
No lado esquerdo da casa, havia um muro de jardim coberto de trepadeiras e um portão de ferro
ornamentado, pintado de branco. Ouviu de novo a voz do homem vindo lá de trás e sentiu uma onda de
alívio. Claro. O cliente estava no quintal, por isso não respondera ao seu chamado. Tudo em ordem.
Girou o trinco do portão e entrou, passando a mão pelos cabelos para se certificar de que seu rabo de
cavalo continuava no lugar.
– Olá! – chamou de novo. – Senhor Williams?
Contornou a casa, passando por uma arcada de vime onde se entrelaçavam videiras quase secas. A
casa fora construída em uma encosta, e o terreno precipitava-se para baixo, oferecendo uma visão
panorâmica da cidade até a Torre WSCR.
Atrás da casa, havia uma piscina vazia. Ao lado, uma vala de drenagem. Os azulejos ali tinham sido
removidos e empilhados junto ao muro dos fundos.
– Alô? Rachel? – disse a atendente no celular.
Rachel levou-o de novo ao ouvido.
– Oi, desculpe. Pensei ter ouvido alguma coisa.
– Na casa?
– Não, no quintal. Mas não há ninguém aqui.
– Escute, Rachel – disse a atendente –, vá para a frente da casa, do contrário, os policiais não vão
saber se estão no lugar certo. – Seu tom de voz era firme, mas Rachel percebeu mais alguma coisa no ar.
Medo.
Quando se virava para o portão, ouviu outro barulho. Um som abafado, gorgolejante, quase inaudível.
Parou para escutar melhor. Após alguns segundos, escutou de novo: vinha da vala junto à piscina.
– Tem alguém aqui – murmurou.
– Rachel – insistiu com vigor a atendente –, por favor, volte para a rua.
Mas Rachel já corria para a vala.
– Meu Deus! – exclamou. – Oh, meu Deus, meu Deus!
– Rachel? – chamou a atendente.
O homem no fundo do fosso tinha uns 50 anos. Cabelos curtos e grisalhos, calças pretas e camisa
branca de mangas compridas, suja de lama nas costas e de sangue no peito. Seus olhos se fixaram nela por um segundo, antes de se revirarem. A boca estava fechada e escorria sangue de uma narina. Rachel
deixou a sacola escorregar da mão e se aproximou mais da extremidade, na tentativa de ajudar.
– Ambulância! – gritou no celular. – Pelo amor de Deus, uma ambulância!
– Quem está ferido, Rachel? – A voz era calma.
– Um senhor. Tem um corte na barriga. Suas tripas... meu Deus, posso ver as tripas dele! Pensei que
fossem uma mangueira ou coisa assim. Estão esparramadas na lama...
Rachel então sentiu o cheiro e apertou o nariz com os dedos. Intestino perfurado. Deu um passo para
trás e respirou fundo. Sempre dissera a si mesma que conseguiria se controlar em casos de emergência.
Conhecia suas prioridades. Pessoas primeiro. Aspirou de novo o ar puro e se aproximou mais uma vez da
vala. O homem se contorcia e sua respiração era curta, entrecortada. Tinha os punhos e os tornozelos
atados com fita adesiva.
– Querida, preciso que fique comigo, ok? – pediu a atendente.
– Sim. Estou aqui. Ele foi amarrado e amordaçado. Há muito sangue.
– Tudo bem, então continue falando comigo, para que eu possa ajudá-la. Tente estancar o sangue antes
da chegada dos paramédicos.
– Tenho uma sacola de roupas aqui.
– Limpas?
– Não. Mas lavei meu avental, que estou vestindo agora...
– Perfeito. Tire-o e enrole-o para fazer uma corda comprida. Vou lhe dizer onde amarrá-la. A
ambulância chegará logo, mas até lá você deve estancar a hemorragia.
Rachel desamarrou o avental e tirou-o pela cabeça. Enquanto o enrolava, um movimento chamou sua
atenção. Dentro da casa estava escuro, mas achou que alguém se escondera atrás das cortinas cor de
creme, que cobriam a porta corrediça. Estremeceu.
– Ah, meu Deus!
– Que foi, Rachel?
– Acho que vi alguém na casa.
A atendente ficou em silêncio. O único som era o zumbido de estática do celular.
– Alô? – disse Rachel.
Ouviu apenas um clique, como se a atendente acabasse de interromper uma ligação com outra pessoa.
Em seguida:
– Rachel, quero que vá para a rua.
– Mas o homem...
– Agora, Rachel!
Ouviu um ruído na casa. Um homem de casaco escuro abria a porta corrediça de vidro. Usava um boné
de beisebol, e um cachecol preto escondia a parte inferior de seu rosto. Rachel deixou cair o avental
enrolado e correu.
– Ele está vindo atrás de mim! – gritou no celular. – Ah, meu Deus!
O portão lateral tinha sido fechado depois que ela entrara no jardim. Correu até ele e tentou abri-lo,
mas não conseguiu. O homem se encontrava a poucos passos de distância. Rachel arremessou o celular
para longe e agarrou o trinco com ambas as mãos, forçando-o a abrir. Passou pelo portão e fechou o
trinco, justamente no momento em que o homem a alcançava. Por um instante, ficou cara a cara com ele.
Tinha olhos azuis, que faiscavam. Ela virou-se e correu. Quase de imediato, o trinco estalou e o portão se
abriu de novo.
Um carro preto vinha pela rua, logo adiante. Rachel pulou na frente dele, os braços agitando-se no ar.
O carro freou prontamente e parou a poucos centímetros de seu corpo. O motorista, um homem de meiaidade com um casaco elegante, olhou para ela, surpreso. Rachel contornou o veículo e debruçou-se na
janela.

– Ajude-me! – gritou. – Deixe-me entrar, por favor!
Podia ouvir os passos do homem que se aproximava. O motorista viu-o também e tomou uma decisão.
Pressionou um botão na porta a seu lado, e Rachel ouviu um clique, enquanto o fecho central se
destravava.
Ela abriu a porta de trás e saltou no banco. Mas, quando tentou fechá-la, o homem que a perseguia a
reteve com firmeza. Rachel se estirou no banco e chutou a mão do perseguidor.
– Acelere! – gritou. – Acelere já!
– Fique quieta – murmurou o motorista. Rachel olhou para cima e viu o cano prateado do revólver. –
Bem quietinha.
Rachel estremeceu. O homem com o cachecol sobre o rosto empurrou suas pernas, espremendo-se ao
lado dela, e fechou a porta.
– Tem fita? – perguntou o motorista, sempre apontando o revólver para Rachel. O cabelo era
entremeado de fios prateados. Parecia um gerente de banco ou um ator fazendo o papel de diretorpresidente em algum programa de televisão.
– Sim – respondeu o outro.
– Amarre os punhos dela.
Sirenes uivaram a distância, cada vez mais perto. Rachel sentiu uma pontinha de esperança.
– Droga – resmungou o motorista. – Pegue isto.
Passou o revólver para o homem do cachecol. Rachel aproveitou para chutá-lo de novo, tentando tirar
a arma de sua mão. Mas o sujeito foi rápido. Segurou o revólver e apontou-o para a cabeça de Rachel em
um único movimento fulminante.
– Nada disso – disse ele.
O carro partiu, o homem no banco de trás sempre de arma em punho. Devagar, com a outra mão, ele
tirou do bolso do casaco um rolo de fita adesiva metálica. Removeu o cachecol de cima da boca e, com
os dentes, partiu meio metro de fita.
– Estenda os punhos – ordenou.
Rachel não se moveu. O homem deixou a fita no banco, inclinou-se para ela e desferiu um soco
violento em seu queixo. Os olhos de Rachel se encheram de lágrimas com o choque.
Preciso arranjar um jeito de sair desta.
Juntou os punhos e estendeu os braços. O homem segurou-os com uma só mão, firmemente. Colocou o
revólver no colo e atou os punhos dela com a fita.
As sirenes lá fora uivaram mais alto, mas o ruído foi abafado quando uma ambulância passou por eles.
Rachel observou-a, mas ela não deu sinal de que iria diminuir a velocidade. Ninguém na ambulância a
tinha visto. A atendente da emergência talvez ainda estivesse na linha, falando para o celular caído no
chão. Não havia ninguém para socorrê-la.
Rachel tinha de se virar sozinha.

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