Um

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Encaro a tela do tablet pela milésima vez e suspiro. Nada de novo, e não adianta eu sair daqui e ir ver se alguém tem notícias do que está acontecendo na tal reunião do Conselho.

— Alguma coisa? — Sara pergunta, deitada na cama de cima do beliche.

— Não.

E não sei por que ela ainda pergunta. Sei que ela também está com o tablet na mão, esperando. Assim que chegarem a alguma decisão nessa tal reunião, todas as terráqueas que estão ligadas à força-tarefa vão ser avisadas imediatamente. Esse foi o combinado, desde o começo. Então só podemos esperar.

Olho ao redor, reparando nas paredes cinza-claro da cabine, com algumas manchas mais escuras que servem para abrir os armários embutidos. Um monitor pregado na parede de frente para o beliche, parecendo uma TV comum, com um painel cheio de controles abaixo dele e uma mesa com duas cadeiras para o lado. Se eu ignorar os controles do monitor e as manchas na parede, até parece que estou em um quarto comum. E, depois de mais de dois anos terráqueos aqui, ele já se tornou comum para mim. Mas em horas assim, quando não tem como deixar de pensar no que aconteceu, é estranho pensar que eu considere tudo isso como algo normal.

Quase quatro anos atrás, eu fui abduzida. Estava em casa, morta depois de um dia infernal no estágio, indo dormir xingando porque tinha que acordar cedo no outro dia. Mas, quando acordei, estava dentro de um pesadelo: presa e com aliens ao meu redor. Fui levada para uma cela com mais mulheres e de tempo em tempo tiravam uma de nós de lá para fazer alguma coisa. Eu nunca soube o que estavam tentando fazer, pelo menos. Nós sempre éramos sedadas. E então alguém me comprou.

Tentei fugir quando me tiraram de onde estava, mas não adiantou nada. Nem essa, nem as outras vezes que tentei fugir. Até que me mandaram para outro lugar. Uma das bases que usavam para treinar e fazer experimentos com a "mercadoria viva", como me falaram depois. Éramos muitas terráqueas ali, a maioria que já tinha sido vendida e revendida várias vezes, algumas com tanto medo dos aliens depois de tudo o que tinha acontecido que não conseguiam nem olhar para um deles. Foi lá que conheci Sara, e todas nós tínhamos certeza de que íamos morrer ali, até que outra terráquea apareceu, com um plano louco para nos tirar de lá.

Talvez seja loucura ter escolhido não voltar para a Terra depois disso tudo. Isso é uma coisa que eu sempre penso. Podia ter voltado para casa, tentado voltar para a vida que eu tinha antes, mas... Eu não ia conseguir esquecer. Nem mesmo os dispositivos para alterar memória que os aliens têm iam fazer efeito em mim, depois de tanto tempo e de tudo que aconteceu. Então, entre passar o resto da vida imaginando o que poderia acontecer e se os ETs iam me achar de novo, preferi continuar aqui e trabalhar para a força-tarefa que está tentando derrubar o esquema das abduções e comércio de terráqueas e outros seres sencientes - porque acabamos descobrindo que não éramos só nós sendo abduzidas.

E agora, depois de mais de dois anos, uma das mulheres da força-tarefa conseguiu provas concretas contra os esquemas de abdução. Carol passou um bom tempo aqui na nave e eu a ajudei. Quando ela nos mandou as informações roubadas do mercado de Nassi, foi Sara quem conseguiu achar uma forma de descriptografar os dados. E depois disso... Nada.

— E se o que Carol conseguiu não for o suficiente? — Pergunto.

Escuto Sara se mexendo na cama e tenho certeza que ela só não está olhando para baixo porque isso seria contra todos os protocolos de segurança básica da nave.

— Você também viu a reação dela e de Ei'ri — Sara fala.

É, eu vi. Nenhuma de nós teve acesso aos dados, depois que foram descriptografados. Eles foram direto para Carol e Ei'ri, o drilliano que estava trabalhando com ela, e depois foram enviados para Gabi, a fundadora da força-tarefa. Não vou questionar isso, entendo perfeitamente o raciocínio deles. São dados comprometedores que com certeza envolvem nomes grandes. Eles não podem só deixar que qualquer um veja isso, e querendo ou não nós somos só "qualquer uma". Além do mais, ouvi um comentário de Carol falando sobre chantagem. Nesse caso, é óbvio que ninguém mais ia poder saber o que encontraram.

Drekkor (Filhos do Acordo 6) - DegustaçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora