Não consigo me mexer. Tento abrir os olhos, mas nem isso consigo. Só continuo ouvindo as vozes...
— Aumente a dose.
Dor. Sinto o fogo atravessando meu corpo, me queimando por dentro, e não consigo gritar. Não consigo respirar. Tento me afastar, mas meu corpo está travado no lugar. Não importa quanta força eu faça, estou presa aqui e o fogo ainda está se espalhando.
— Mais.
DOR.
Me sento na cama de uma vez e respiro fundo, tentando me acalmar. Foi só um pesadelo. O quarto está escuro e não consigo ouvir se Sara está na cama de cima ou não, porque meus ouvidos estão zumbindo.
Já passou. Já passou, isso foi anos atrás, a base foi destruída e esses aliens estão todos mortos. Não que isso adiantasse muita coisa.
Faz meses desde a última vez que tive esse pesadelo. Ou melhor, desde a última vez que me lembrei disso. Pensei que tinha ficado livre disso de uma vez por todas, mas... Engulo em seco. Não é difícil entender porque voltei a ter o pesadelo. Com tudo o que está acontecendo, não faz diferença se sei que a tripulação não aceitaria que Sara e eu fôssemos vendidas ou coisa pior. Nem faz diferença se todo mundo da engenharia garantir para Sara que nós não estamos correndo risco. A questão é que estamos por conta própria. E da última vez que fiquei por conta própria no Acordo...
Não vou continuar me lembrando disso. Não vou. Já passou, eu nunca mais vou voltar para a mesa de experimentos.
E também não vou conseguir voltar a dormir.
Respiro fundo de novo e solto o ar lentamente. Se prestar atenção, consigo ouvir a respiração pesada de Sara. Ótimo, isso quer dizer que pelo menos não gritei enquanto estava sonhando. No começo, eu sempre acordava Sara. Mas ela também tinha seus pesadelos, então não falava nada.
Me levanto e estendo a mão para o sensor ao lado da minha cama. As luzes são programadas para se acenderem ao detectar um certo nível de movimento no quarto, e não quero acordar Sara. Se ela está conseguindo dormir normalmente, melhor para ela. Mas eu preciso arranjar alguma coisa para me distrair. Até ajudar a fazer inventário seria uma boa coisa, agora. Se bem que acho que vai ter mais o que fazer na enfermaria.
Saio do quarto em silêncio e vou direto para o elevador. Os corredores também estão vazios, o que não é nenhuma surpresa. Estamos no meio do ciclo de sono da nave, o horário em que só quem está trabalhando está acordado. Dormi mais do que esperava, no fim das contas, mesmo que sinta como se não tivesse dormido nada. Todo o meu corpo está dolorido, e também não preciso de ninguém para me contar o motivo disso: tensão. Era sempre assim no começo, nos meus primeiros dias com a força-tarefa. E a única coisa que podem fazer é me dar algum tipo de relaxante muscular sempre que isso acontece - e eu sempre preferi deixar isso para quando a dor está insuportável. De novo, faz muito tempo que isso não acontece.
Quando chego no corredor da enfermaria, parece que o silêncio está ainda mais pesado. Não tenho mais tanta certeza de que vir aqui é uma boa ideia... Não me esqueci dos berros que ouvi mais cedo e não quero nem pensar na possibilidade de alguém da tripulação não ter sobrevivido àquela incursão. Em mais de dois anos desde que estou aqui, não perdemos ninguém.
Mas não saber é pior. E voltar para o quarto, para continuar me lembrando da mesa de experimentos...
Respiro fundo e continuo pelo corredor. Todas as portas estão fechadas, o que já é estranho, mas pelo menos consigo ver que as luzes estão abertas dentro do laboratório principal. Ótimo. É para lá que tenho que ir, de qualquer jeito, mesmo que isso também não seja uma boa ideia. Devia ter pensado melhor. Entrar em um laboratório depois desse pesadelo... Um arrepio me atravessa. Mesmo assim, ficar sem fazer nada ainda é pior.
Paro na porta do laboratório e coloco a mão no painel ao lado da porta.
— Gheri? — Chamo.
Não escuto nada, mas isso não é uma surpresa. O laboratório tem isolamento sonoro, porque às vezes Gheri precisa trabalhar em coisas mais delicadas, que não podem ser interrompidas por qualquer barulho do lado de fora. Essa também é a única sala que tem a opção de silenciar o painel da porta - coisa que eu sempre morri de inveja.
O comunicador embutido no painel estala de leve.
— De quê você precisa? — Gheri pergunta.
Suspiro. Ótimo, pelo menos ele não estava ignorando tudo aqui fora.
— Só queria saber se você está precisando de ajuda com alguma coisa aqui — falo.
Ele não responde na hora. Cruzo os braços, esperando a porta se abrir.
— Desculpe, você não tem permissão para estar aqui.
Encaro o painel, sem ter certeza de que ouvi direito, antes de engolir em seco. Desde quando? Algumas horas atrás eu tinha vindo na enfermaria e conversado com Rivna, e agora...
— Drek me mandou ajudar vocês no inventário — aviso.
— Já terminamos.
Impossível. Eu trabalhei aqui tempo o suficiente para saber que "fazer inventário" é coisa de uma semana de trabalho E não quero pensar no que isso pode significar. Ter permissão para vir na enfermaria é uma das coisas que estava me ajudando a não ficar paranoica demais. Isso queria dizer que não tinham nada a esconder, não é? Mas se agora Gheri não quer nem abrir a porta para mim...
— Os que se feriram na incursão... — começo.
— Os que ainda não se recuperaram só precisam de descanso. Não tem nada para você fazer aqui, Talita.
— Droga, Gheri, só me dá alguma coisa para fazer.
Escuto o suspiro dele mesmo através do comunicador.
— Sinto muito, Talita. Aqui não é seguro para você.
Não é seguro para mim.
Dou um passo para trás, e depois outro. Não. Estou exagerando, estou projetando meu medo, porque a tripulação de Drek nunca faria uma coisa assim. Ele não faria algo assim. Não importa o quanto eu esteja com raiva e desconfiada, não consigo acreditar nisso.
Quase corro no caminho de volta para a cabine, e dessa vez o fato de não ter ninguém nos corredores não parece mais ser algo normal. Estou ficando mais paranoica, estou interpretando as coisas errado, só pode ser. Não quero acreditar nisso.
"Não ser seguro para mim" é bem diferente de "não ter permissão".
Entro no quarto e dessa vez deixo as luzes se acenderem na configuração mais baixa. Não quero ficar no escuro. Dou mais alguns passos para dentro do quarto e paro, sentindo algo estranho no chão. Ah, não. Ninguém faria uma armadilha nem nada do tipo. Me recuso a acreditar nisso.
Olho para baixo. É só um dos biscoitos que caíram no chão, ontem. Nem me lembrava mais deles. E acho que estou ficando paranoica demais. Não. Não tem como ficar paranoica demais nessa situação. Suspiro e pego o prato vazio que ainda está em cima da mesa. Se não vou dormir, mesmo, posso pelo menos aproveitar e catar esses biscoitos. Me abaixo, sem conseguir parar de pensar nas palavras de Gheri e na forma como ele nem abriu a porta do laboratório. Não teve coragem nem de falar aquilo olhando na minha cara...
A verdade é que eu não sei o que é pior. Se é não saber, ou se é a forma como todo mundo está agindo até agora. Eu pensei que tinha amigos aqui. Estava começando a pensar nessa nave como minha casa, de verdade. Mas se ninguém vai nem falar nada sobre o que está acontecendo, será que realmente foram meus amigos em algum momento? Paro e respiro fundo. Não queria pensar nisso, também, mas é a verdade. No fim das contas, estamos sozinhas aqui.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Drekkor (Filhos do Acordo 6) - Degustação
Roman d'amour-= Primeira versão, não revisada. A versão final tem alterações =- Trabalhar em uma nave de piratas transformados em mercenários parecia uma ótima ideia para Talita. Além de viajar de graça por todo o Acordo, os mercenários estavam dispostos a lhe e...