Alguns dias são tão cruciais que alteram todo o curso da história de uma vida. Alguns desses, repousam confortavelmente nas sombras da obscuridade. Há no cosmos, vivo e que respira, algo misterioso, maravilhoso e tremendo, acima da compreensão de todas as mentes. É algo tão poderoso que me faz ter a certeza que não existe atalho para a santidade... Principalmente quando todo o resto convida a pecar.
Vim para o mar pedindo esclarecimento e remissão das minhas culpas. E recebo mais um sacrifício. O que fazer com Eva? Quem é Eva? E por que Deus quis que eu a resgatasse do mar?
Será que é isso? Pagarei por meu pecado ajudando essa pobre alma?
Se essa for a vontade do Senhor, aceitarei de bom grado o meu fardo. E cuidarei da moça até garantir que ela esteja novamente segura e no caminho do bem.
Vou até a cabine, escolho uma calça de moletom e uma camiseta, me visto e me encaminho até Eva.
A noite chega e lá fora está calmo e escuro. Ondas quebram com mais vigor, mas nada fora do normal para o alto mar.
Bato à porta. Uma vez, duas, três. Nada de resposta. Fico ansioso e preocupado. Não quero invadir a intimidade da moça, mas tenho receio de que ela passe mal, já que há pouco passou por um afogamento e sabe-se Deus mais o quê.
Bato novamente, chamo pelo nome, nada de resposta. Decido entrar.
Abro a porta com cuidado, espio pela fresta e sob a claridade da luz, vejo nitidamente que Eva dorme um sono profundo. As toalhas ainda do lado dela, na cama, me dizem que sequer conseguiu tomar banho.
Quero me certificar de que ela esteja bem. Entro com cuidado, sem fazer barulho. Toco a testa para sentir se está com a temperatura normal, acompanho a respiração e os batimentos cardíacos. Observo as escoriações no rosto, me lembro dela comentar algo sobre alguém querer fazê-la mal... Penso que já o fizeram. Provavelmente apanhou muito. Está com os olhos inchados e machucados. Hematomas que vão do vermelho ao preto, passando pelo roxo, o esverdeado e o amarelo, no rosto e abdômen. Tenho certeza que ela vem sofrendo agressão há vários dias. Como um ser humano pode fazer isso? Principalmente a uma mulher...
Essas mulheres que vendem o corpo para sobreviver costumam ter uma realidade dura e muitas necessidades. Na maioria das vezes são discriminadas, sofridas e cheias de problemas. Imagino que é uma coisa muito difícil se sujeitar a ser tratada como mercadoria. E infelizmente, são usadas como máquinas de sexo e sacos de pancada. Geralmente, vivem em um meio perturbador, machista e violento. E suportam tudo isso para ter o que comer ou para sustentar filhos. É muito triste.
Qual será a história de Eva?
Observo-a mais um pouco. O corpo é muito bonito. Ela não é delgada. É normal. Tem curvas onde as mulheres mostram as formas, e músculos firmes, de estatura mediana.
A pele na cor chocolate sustenta um brilho admirável, e deixa em evidência o minúsculo biquíni branco que cobre apenas o essencial. Os cabelos castanhos, ainda encharcados pela água do mar, desgrenhados, aparentam ser cacheados. O nariz é arrebitado e os lábios volumosos, quando fechados, formam um coração. Nos poucos segundos em que vi os olhos abertos, entre as lágrimas, a vermelhidão causada pela água salgada, e os hematomas, pude perceber que são duas esmeraldas de um verde magnífico, ainda sem brilho, mas com um potencial enorme para reluzir. As muitas tatuagens no braço direito, me remetem à desenhos infantis. Passa a nítida impressão de uma pessoa que busca desesperadamente recuperar uma infância, talvez, perdida. Desço o olhar pelas pernas, são esguias e fortes. E sob o delicado pé, onde vejo unhas pintadas de preto, observo também a tatuagem de uma serpente negra, em que a cabeça repousa no dorso, o corpo faz a volta no calcanhar, e a cauda termina na parte dianteira do tornozelo.
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Profano
Romance"Não me tornei um cético. Transformei-me no pior que o ser humano pode ser: um descrente de si próprio." Uma vida dedicada ao sacerdócio. Um encontro que mexerá com estruturas e pensamentos, até então, inflexíveis. Uma paixão que colocará a vocação...