Capítulo X - Não é ele

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Existem pessoas que são naturalmente sentimentais, dramáticas, que sentem demais e intensamente. Pessoas que se comovem com qualquer história triste, com a perda ou o fracasso, e enxergam nisso o fim do mundo. Miranda não é dessas pessoas. Nunca foi. Nem as temáticas mais delicadas são tratadas com dramaticidade por ela. É tudo uma questão de perspectiva, e tratar cada coisa com sua devida seriedade é sempre importante. Mais do que importante, é essencial. Mas estar aqui nessa casa, depois de tantos anos, trazia um bocado de lembranças que há muito ela não revisitava.

Nem sempre nós estamos preparados para relembrar algumas coisas. Às vezes somos pegos de surpresa e parece ser um solavanco que desencadeia uma enxurrada de sensações. Certamente essas paredes robustas e esse ar de passado vívido não sejam culpados por isso, mas é provável que tenham mais impacto do que o sofá de Bocote ou o abajur quebrado em cima da máquina de costura enferrujada.

É preciso aceitar o passado para entender o presente. E vice-versa. Tão importante quanto subtrair os passos do presente é calcular os passos errados do passado para não repeti-los. Colecionar as vezes em que as frustrações serviram de pontapés e aquelas em que os pontapés frustraram o decorrer dos caminhos que não deram certo. É tudo uma questão de ponto de vista.

Vindo aqui, tudo parece igual. As recordações dessa velha East End tão medieval era a pura monotonia, e todo esse tédio sempre foi inaceitável pra ela. Vendo daqui, percebe-se tão diferente.

Michael a observava, calado. Sua irmã sempre foi um enigma bom de estudar, tentar decifrar, mas também precisava de espaço até pra sentir o que tivesse de sentir. Vai até a vitrola, busca um disco específico e, quando encontra o que procurava, limpa a poeira com uma das mãos, tira da capa e sopra o resto de poeira que ainda acinzentava o preto do vinil. Algumas coisas nunca mudam. Ele tenta ajustar na vitrola que, mesmo coberta, ainda estava um pouco suja por dentro. Mas funcionava. Ele sabe bem pelas tantas vezes que já veio aqui. Funcionou. O som que ecoa é tão límpido que parece algo que já mais se conseguiria descrever. Bela explicação.

— Lembra dessa? — ele pergunta, observando-a.

— Eu tenho boa memória, você sabe — ela vai até o canto da sala, aproximando-se do irmão. Pega a capa do disco que estava em suas mãos e observa um rabisco no canto e um sorriso de canto de boca surge inadvertidamente.

— Ele escolheu bem, não foi? — ele diz.

Ela olha pra ele como quem responde de forma silenciosa. Ele assente, entendendo o que ela queria dizer. Poucas foram as vezes em que conversaram sobre o ocorrido que levou um dos melhores amigos deles a ter de se despedir tão cedo.

Eles foram inseparáveis durante um ano inteiro. Na verdade, era mais inseparável de Michael do que dela. Se quisesse saber onde um deles estava, era só procurar por qualquer um outro. Fora num dos aniversários pacatos de Miranda, que nunca eram de fato comemorados, já que ela tinha aversão a ter que compartilhar o mesmo espaço com quem não considerava amigo de verdade — que é bastante irônico, já que seu trabalho também consiste em conviver diariamente com pessoas pelas quais ela não nutre nada além de antipatia. Com uma exceção cheia de asteriscos que atende pelo nome de Nigel, que ela confiava mas tinha receio de aproximar-se tanto quanto antes.

— Alan sempre teve bom gosto. — diz num sussurro. Se não tinha pretensão de parecer emotiva, falhou um tanto. Pigarreou, limpando a garganta — Você ainda tem o bilhete? — pergunta com cautela.

— Está mais pra carta do que pra bilhete. Mas sim. — aponta para as mãos dela — Ta aí dentro — sorri para a cara de interrogação que ela fez — Do jeito que você deixou.

Você não vê [em hiatus]Onde histórias criam vida. Descubra agora