"Mais Ninguém"

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"Mesmo que não venha mais ninguém

Ficamos só eu e você

Fazemos a festa, somos do mundo

Sempre fomos bons de conversar

Eu só espero que não venha mais ninguém

Aí eu tenho você só pra mim

Roubo teu sono, quero teu tudo

Se mais alguém vier não vou notar"*


Os táxis amarelos percorriam toda a extensão da Rua das Laranjeiras. Via a movimentação e, em pleno Rio de Janeiro, não afastava de mim a terrível mania de não viver o momento certo na hora certa, deixando com que a ansiedade fizesse do futuro, o presente. Eram quase oito da noite e eu, que mal havia saído pra beber algo que me aliviasse dos 45°, já sofria sem saber como faria para voltar.

Vencido o primeiro monstro, meu chinelo branco, comprado exatamente para aquela ocasião, enfim tocava as pedras do calçadão de Copacabana. A culpa por gastar uma pontinha do sacrifício dos últimos três anos parecia um corpo morto na sala, sendo ora notado, ora esquecido. Nem o mar agitado da praia mais famosa do continente conseguia afastar tantos pensamentos confusos, embolados e tão desgastantes. Pensava no horror que minha família sentia por me ver embarcando num sonho falido, da década passada, que era uma clássica tragédia anunciada. A taxação da loucura caía bem para caracterizar o filho teimoso que pegou tudo que conseguiu nos últimos tempos indo se aventurar num continente que não dava tantas oportunidades para quem não fosse um dos seus autóctones.

Não se pode negar os efeitos de algo tão poderoso como o mar, mas apenas uma voz e violão fez sumir como fumaça os pensamentos que me bloqueavam de viver o presente. O som, com uma de minhas músicas favoritas, vinha de longe, do final do quarteirão, num barzinho de calçada que não estava nada movimentado. Levantei do quiosque do outro lado da avenida e fui averiguar o timbre que me soou familiar, mesmo que tivesse o escutado apenas por alguns instantes. Estava fresco nos ouvidos assim como aquela pele após o banho.

Sentado num banco desconfortável de madeira, lá estava Kaká, no meio de uma composição clichê de pequenas lâmpadas redondas amarelas presas num varal e bancos de paletes, que me deixavam na comoção de um ambiente aconchegante. Enquanto ele dizia contar estrelas e não dólares, eu notava seu rosto sem um fio sequer. Seus cachos agora estavam completamente formados e seus dedos dedilhavam as cordas do violão, de modo que parecia abraçar com os tons. No meio da música percebia que ele havia reparado e fingi, numa feição mais falsa que podia existir, que havia chegado ali sem qualquer motivação. Assim como na letra da música, lá estava eu, tolo, sonhando com as coisas que poderíamos ser, querendo concordar com o refrão que dizia "tudo que me mata me faz me sentir vivo".

A noite avançou, o bar não lotou e parecia que apenas eu me interessei pela voz e violão de um garoto que parecia mais novo que eu, como se isso fosse possível. Quase deixei o celular cair quando vi o horário e, seria sonho demais, até para um pisciano, que nós dois voltaríamos juntos e seguros pro hostel após ele juntar as coisas. Terminei meu chopp quente e fui caminhando lentamente de volta para a Orla sem saber se estava sendo mal educado em não ir cumprimentar ou se seria muito constrangedor forçar alguma intimidade ou amizade.

_ Fred, tá voltando pro hostel? - dizia sem me deixar afastar de fato

_ Oi, tudo bem? Eu acho que sim, já está tarde...

_ Calma ai, vamos juntos! Ou se quiser sentar mais um pouco pra ver o dia amanhecer...

Caminhei de volta sem ter onde colocar os olhos. A camisa azul parecia ainda mais bonita, os braços longos e pouco malhados pareciam ainda mais envolventes e a voz incomparável agora era ainda mais agradável.

_ Você parece tão... carioca... por que estaria num hostel da sua própria cidade - foi a única coisa que saiu

_ Problemas em casa. Saí um pouco pra conseguir controlar minha vontade de mandar minha família a merda! - dizia, intenso

_  As coisas estavam difíceis? (pra que perguntar isso? - o arrependimento batia a cada nova frase)

_ Insustentáveis. Minha mãe foi chamada para ser pesquisadora na Ásia e eu não tenho condições nenhuma de conviver com meu pai, ainda mais que ele se aproveitou da ida da mamãe e chamou meu tio pra ficar lá em casa. Imagina o inferno de uma casa com dois caras de quarenta anos que só sabem falar de mulher, empresa e dinheiro

Eu não sabia o que soltar, apenas sentia uma ponta de felicidade por vê-lo compartilhar coisas pessoais comigo, nos cinco primeiros minutos de conversa. Sentados próximos a areia, tinha medo de morrer por uma bala perdida ou por um olhar devidamente encontrado. Kaká falava da saudade que sentia da mãe, que se entregou a dedicação profissional há dois anos, deixando um vazio insubstituível. Seu olhar doce, castanho e suave, preso aos olhos quase nada redondos, cintilava quando tocava no nome da mãe. Era nítida a saudade. A cada nova frase, desgosto com o pai e o tio, com os rumos de sua família e a necessidade de compartilhar as dores que o fizeram sair de casa. Eu era apenas ouvidos por não gozar da habilidade de contar minha vida para um estranho, como ele fazia.

O vento soprava leve, quase não surtindo efeitos, e meu olhar não desviava por um instante daquele sorriso de canto de boca. Por um segundo sequer eu deixava de notar seu rosto, seus dedos ajeitando os cachos, sua voz alta e extremamente firme e já amava sua mãe como ele a amava. A regra era me deixar sentir tudo aquilo e assim o fiz, ao passo que a personalidade que eu passaria a admirar fosse sendo revelada sem muita preocupação. Me espantava como alguém pudesse ser tão transparente, deixando com que cada gesto, frase ou opinião evidenciassem sua visão de mundo.

Num ponto da conversa, me embaralho por completo

_ Eu acho que nós ainda vamos namorar. - dizia esticando o pescoço

Duvidei do que ouvi e não consigo sequer imaginar a feição que surgiu genuinamente. Eu deveria estar zonzo de sono ou de chopp, após viajar a noite toda acordado e beber aquele líquido quente. Eu não passaria a vergonha de repetir e depois ser ridicularizado. Como alguém, em três ou quatro horas de conversa solta algo como isso? Kaká sempre foi bom em dizer de modo assertivo o que pensava e isso me encantava. De frente pra mim, claramente seguro e com o olhar fixo, repetiu

_ Eu acho que nós ainda vamos namorar, Fred. Olha como estamos agora. Olha a conversa que tivemos, os olhares que trocamos. Essa noite pra mim foi memorável e eu nem sei te dizer o porquê. Você me viu cantando e entrou numa conexão que tentou negar e esconder mas eu não podia ir pro hostel sem dizer isso. Entramos em conexão e eu não consigo fingir que isso não aconteceu. Agora passamos horas sentados aqui e isso me bastou tanto. Não vou te beijar, por mais que veja nos seus olhos que isso é um desejo. Mas eu tô aqui pra quando você quiser fazer isso.

Completamente mudo, recostei a cabeça no ombro que parecia adequado para que encostasse. Meu rosto deslizou milímetros vagarosamente pelos longos minutos que seguiam. Na indecisão, no medo, no tremor e na angústia os lábios se tocaram após muitos minutos de um silêncio intenso que nos permitia ouvir as batidas no peito. As pontas dos dedos se tocaram. O nariz deslizou pela nuca. Aquele primeiro beijo ficou impregnado nas areias e na luz do luar. 

*Mais Ninguém - Banda do Mar

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