"Casa Pronta"

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"Vem pra perto de mim

Já cansei de esperar

Você nem vai acreditar

Quando vir a nossa casa pronta

As flores da sala de estar

E os detalhes que você gosta

Eu fiz um quarto pra você

Decorei até a sua porta"

-

"Se sim disser, se a mim quiser

Já viu, já é, já deu

E eu vou torcer

Pra ser você e eu"*

Vou fazer uma das coisas mais difíceis da minha vida agora, Fred. Então, me desculpe se algo não acontecer da forma como é mais confortável pra você e desculpe se eu demonstrar sensações que vão te deixar sem jeito, sem saber o que fazer. - me dizia Kaká, introduzindo um silêncio sepulcral.

_ Por que está me dizendo isso, Kaká? O que está acontecendo - dizia sendo indelicado

Ele seguia mudo no volante, sem dizer uma palavra, sem música no rádio, sem risadas, sem conversas, sem o frescor dos dias anteriores. Era a primeira vez que Kaká parecia descer do limbo que eu o havia colocado. Aquele processo de endeusamento que vinha de minha parte começava a se romper e então surgia um Kaká de carne e osso, com limitações que eu julgava não existir. Sempre honesto, sincero e aberto em suas atitudes, aquele recado me foi dado como uma bofetada, sem nenhum respiro ou preparo. Pra onde estávamos indo? O que estava acontecendo? Eu não conseguia imaginar do que se tratava. 

As curvas na beira mar me levavam pro desconhecido. As ondas quebravam nervosas nos paredões de pedra e Kaká estava compenetrado, sério, mudo. Ele saía do lugar de deus intocável que minhas projeções haviam desenhado, como sempre fazia com quem me relacionada. Mesmo misturado diante daquela situação, o vento me sobrou uma sensação de esperança e uma felicidade esquisita. Por motivos que não se esclareceram, havia medo, mas havia também uma boa sensação de saber que Kaká estava se mostrando, tinha intimidade pra encarar seus demônios diante de mim, de se expor e revelar suas vulnerabilidades.

Suas mãos tremiam ao destrancar o portão de madeira envelhecida. Ao abrir o portão, Kaká desabou. Chorou como criança que perdia um brinquedo, como alguém que tinha um pedaço arrancado pra sempre. Ele se ajoelhou no gramado verde aos prantos, sem pudor de deixar as lágrimas grossas rolarem. Me posicionei numa distância de segurança para deixar que ele vivesse aquele momento como deveria ser, sem minha intervenção. Fechei o portão que ele havia deixado aberto e acompanhei seus passos.

Kaká caminhou até a varanda da casa branca com as linhas externas, arestas e contornos azuis, rodeada por trepadeiras de um verde escuro vibrante. A casa era cuidada, tinha a grama aparada, a tinta ainda muito vívida. Era nítido que alguém tomava conta daquele espaço, porém não havia vida ali. Ninguém a habitava, as águas da piscina estavam intactas.

Chorando, mas na tentativa de conter a descarga emocional que travava seus passos, Kaká foi até a porta de ferro da entrada e chorou copiosamente por longos minutos. Nunca presenciei alguém chorando tanto e o desespero era maior que qualquer outra coisa. O abracei quando seus olhos me chamaram. Aproximei com o cuidado de um acidente e o coloquei no colo, o acolhendo, enxugando as lágrimas e espalhando o suor que se acumulava nas pálpebras e curvas do rosto.

_ Essa era a casa da minha avó, Fred. Desde que ela morreu eu nunca tinha vindo aqui. - dizia sob soluços

_ Posso imaginar o quanto você a amava, fofinho. Posso imaginar o amor e o carinho que ainda existe aí dentro - o abraçava

_ Ela deixou isso aqui como um refúgio pra mim. Quando ela morreu, fiquei sabendo que ela tinha registrado formalmente que isto só caberia a mim. Não deu tempo dela me dizer isso com todas as letras, mas eu sei exatamente o motivo pra isso... ela não queria me deixar junto com meu pai. Sabia que ele era bruto, grosso, incompreensível e não me daria um segundo de paz dentro daquela casa. Desde que a filha dela foi embora e me deixou aqui sozinho com meu pai, minha avó se sentiu muito responsável por mim. Eu nunca vim morar aqui porque meu pai jamais aceitaria que um filho dele saísse de casa e viesse morar com a sogra. Seria um atestado social de que ele era uma pessoa desprezível que não tinha amor suficiente pra manter a esposa nem o filho por perto.

_ Ela era uma pessoa generosa, cuidadosa e atenciosa como você, Kaká...

_ Muito... quem sou eu perto do que minha avó era! No dia que meu pai descobriu que eu era gay, vendo um comentário meu num post de política no Facebook, mandou mensagem pra todos os familiares me desmentindo, dizendo que eu só queria aparecer no Facebook fazendo comentário irônico e debochado pra desviar a atenção de coisas importantes. Minha avó me ligou, disse pra eu vir até aqui e me pediu pra eu explicar tudo. Disse a ela que meu pai estava maquiando as coisas e que naquela família havia um neto gay sim, que eu era gay sim e se meu pai tinha problemas com aquilo, ele que deveria se resolver, ele que deveria arrumar uma forma de lidar com aquilo. O incomodado era ele, o que tinha problema com aquilo era ele. Minha avó jamais me deixaria ali com ele. No dia em que recebi o papel dizendo que todas as providências já estavam tomadas para que pudesse enfim ter esse refúgio eu entendi o que ela queria com isso. Me deixar um pouco de paz nessa terra. Ela tentou tapar o buraco de desamparo que minha mãe deixou.

_ E agora você está aqui, diante do ambiente de intimidade dela... e que vai ser seu ambiente de intimidade também...

_ No início eu não quis vir aqui. Eu não queria encarar essa ausência, esse vazio. Mas agora estou chorando por sentir todo o amor que ocupa essa casa, Fred. Vou iniciar uma nova fase aqui e eu quero que você fique, que tenhamos um espaço pra gente viver nossa vida. Eu sei o quanto sua sexualidade ainda é um tabu pra você, o quanto isso ainda te incomoda, o quanto você tenta fugir disso, escondendo seu afeto em público, querendo correr pra um continente onde ninguém sabe sua história, seu histórico, seu passado. Sei que sua motivação pra ir até a Europa não era só pelo dinheiro, por uma melhor condição de vida, mas por ser uma página em branco, por ser um lugar onde sua vida teria um marco inicial. Um lugar onde você não teria que se assumir pra ninguém afinal você já chegaria sendo quem você é. Sei que você queria um novo start na vida, uma página em branco, um marco que apagaria tudo que ficou pra trás. Você acha que seria mais fácil mas sua sexualidade é essa e se as pessoas têm problema com isso, elas têm que resolver esse problema, não você.

_ Nossos demônios estão mais vivos do que nunca, né? Estou aqui pra lidar com os meus e te ajudar com os seus, Kaká. Que meu start em branco seja aqui.


*Casa Pronta - Mallu Magalhães 

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