"Cena"

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"Não sou assim, amor

Foi só

Uma maré ruim

Perdoa o drama

E não desiste de mim

E eu, que fico à flor da pele

Sem querer

Eu tenho um coração vulcânico

E sempre acabo errada"*

As mensagens que eu havia enviado há semanas ainda não haviam sido entregues. Trocava palavras atropeladas, ansiosas e angustiadas com Leo e Juninho, que já não sabiam o que fazer sozinhos. Nas semanas que passei no Rio passei a gostar dos meninos como pude. Eles eram rudes, falavam coisas sem uma gota de noção e que às vezes feriam. Ora ou outra emendavam uma frase homofóbica numa piada de mal gosto por força do hábito, puro despreparo, indelicadeza ou falta de sensibilidade, mas naquele momento eles estavam ali, trocando confidências e chorando comigo pelo sumiço de Kaká. Apesar dos pesares, sentia que amavam o amigo, que se preocupavam e que me mobilizaram por saber que eu também preocuparia e poderia ajudar.

Leo e Juninho saíam de carro pelas praias ao redor, pelos barzinhos por onde Kaká poderia estar, pelas casas dos amigos, por praças, espaços públicos. Num flash me lembrei que conheci Kaká exatamente num momento como este, em que ele "sumiu" de casa, precisou de um tempo e foi se exilar num hostel. Num daqueles súbitos de fugir de tudo, se afastar e viver seu momento de introspecção, longe de tudo e de todos, conheci Kaká dormindo num hostel, saindo com seu violão pela zona sul toda noite, sem mexer no celular, atender ligações ou pisar em casa. Estava angustiado pelo sumiço, mas ao mesmo tempo tentavam me acalmar, pensando que ele deveria estar num momento sabático em algum hostel, pousada ou hotel descansando a cabeça, ficando longe dos pais, dos amigos, de tudo que o fazia lembrar da vida que tinha. No último desses momentos eu cruzei seu caminho e fui uma válvula de escape, uma rota de fuga, alguém que o ajudava a sair da atmosfera pesada que o cercava e agora eu chorava copiosamente por saber que eu entrei naquele mundo que ele queria fugir e que, agora, eu também era uma pessoa que ele desejava evitar. Aqueles pensamentos me feriam a caminho do Aeroporto de Confins e era extremamente doloroso pensar que antes eu era exatamente a figura de escape e, com as mudanças que a vida nos faz passar, agora eu também era motivo de fuga.

Com ânsia de vômito e muita dor de cabeça, cheguei ao Rio em milagrosos cinquenta minutos. Meu medo de avião, de altura, de sobrevoar e de estar naquela lataria de muitas toneladas que poderia cair a qualquer momento ficou totalmente em segundo plano. Pensar em Kaká me angustiava e aquela quase hora no avião passou como longos dias chuvosos sem poder sair de casa. Eu era refém do acaso e nada poderia fazer senão implorar ao céus por um sinal de fumaça.

Do aeroporto segui direto para nossa quase-casa no Rio. O táxi me deixou na entrada enquanto eu suspirava pedindo para que todas as forças me mostrassem onde poderia estar Kaká. Liguei para o hostel ainda na porta de nossa quase-casa e perguntei se Kaká havia passado por lá. A moça da recepção ainda lembrava de nós dois e com toda cordialidade me disse que Ricardo Buarque não tinha voltado. Perguntou se estávamos bem e eu desliguei novamente aos prantos.

Revirei o fundo da mala preta que já havia rodado milhas e milhas apenas naquela virada de mês na minha aventura embebida por lágrimas, drinks, mar e amor e procurei as chaves da nossa quase-casa. O vento soprava forte como se as forças divinas quisessem aliviar um pouco da aflição que tomava conta de mim, em vão. A grama havia crescido, os tecidos haviam sido derrubados com o vento e o cenário do jardim indicava que não tinha acontecido nenhuma festa ali nos últimos dias ou semanas. A estrutura de ferro, madeira, folhagens e tecidos brancos estava vazia, sem os banquinhos, copos, instrumentos ou qualquer outro sinal de apresentações musicais. A casa estava completamente fechada, sem nenhuma brisa entrando. No calor do Rio seria impossível existir dentro daquele lugar.

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