"Seja como for"

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"Meu bem, você pra mim é privilégio

Sorte grande de uma vez na vida

Minha chance de ter alegria

Não importa quando, como, onde

Somos o nosso próprio rei"*

Deitado na beliche de frente pra sua, como dormir? A moça paulista com traços orientais, que depois descobri chamar Thais, dormia sem soltar som algum na cama acima da minha, na beliche que dividíamos, enquanto o senhor da competição de bandas da Urca quase arrancava o forro do quarto centenário na cama da beliche acima da de Kaká. Mas não era aquilo que me afastava do sono. 

O braço dele caía para fora da cama, enquanto o lençol branco tampava sua barriga e um pedaço das pernas. Fiquei por horas reparando como ele,  mesmo dormindo, era o cara mais lindo do mundo, como seus cachos eram amassados pelo travesseiro e tomados pelo suor que escorria pela testa. Aquela cama era onde eu mais queria estar. De frente pra mim, tão perto de mim e ainda assim tão distante. Eu quase conseguia sentir a respiração quente que saía das narinas dele, com aquele menos de um metro que separava as duas beliches.

Como dormir após uma noite tão memorável? Jamais imaginaria, quando vi Kaká dormindo todo coberto, que me diria tanta coisa na beira mar. Jamais, nem nos melhores sonhos, conseguiria imaginar que, um cara como ele, que a primeira vista não deixou nenhuma brecha para que eu pudesse cogitar qualquer coisa, me diria que nosso futuro poderia ser compartilhado. Ouvi as histórias da mãe que não hesitou em buscar um currículo melhor, uma vida recheada de prestígio acadêmico e profissional e não se prendeu a uma família estranha regida por homens que só pensam em si. Me encantei ao ver como ele a amava, como ela era especial apesar dos vazios. Me encantei com a voz que colocou em meus ouvidos minhas canções favoritas, sem saber que elas eram tão especiais pra mim. Aquele bar vazio parecia feito apenas pra nós dois.

Hora ou outra eu soltava um ponto isolado da minha vida. Falava sobre a faculdade, que eu acreditava ser tão essencial, e que agora estava abandonada. Sonhei tanto com essa realização e agora eu só conseguia pensar em trabalhar, ter meu dinheiro e meu apartamento apertado em Londres. Contava sobre os pais que não me conheciam, que me achavam estranho demais, antissocial demais, isolado demais e anti qualquer coisa que exigisse contato com pessoas ligadas por sangue. Não sabia o que dizer, o que compartilhar, e Kaká estava lá, dizendo sobre nossos vinte anos, sobre a vida infeliz no Rio (eu imaginava como isso seria possível), sobre o pai e o tio que não tinham uma gota de respeito por mais ninguém além de seus bens e da saudade que ele sentia da avó, que faleceu três semanas atrás, sendo o estopim para que ele deixasse de vez aquele seio. Agora Kaká dormia feito pedra, deixando as curvas das coxas magras, levemente cobertas por fios finos pretos, sob a penumbra do quarto.

                                                                                *

_ Fred... Fred.. - me tocava com a ponta dos dedos, com toda delicadeza

_ Oi... quantas horas? - perguntava com a voz falhando

_ Você vai perder o horário do café do Hostel... vamos descer?

Já era tarde demais. Acordei dez minutos após o fechamento do café e, quando desci, lá estava ele sentado, terminando de comer seu pão com presunto. Uma bermuda fina, curta e branca, acima do joelho e o tom de azul claro que não saía de suas blusas. Fui descendo as escadas sem graça, tímido, e via o olhar dele me encontrando, com um clássico sorriso de canto de boca que já uma das coisas mais lindas do Rio.

_ Já foi ao Parque Lage? Ao Cristo? Ao bondinho? São requisitos básicos... - dizia ele entre os goles de suco

_ Não, ainda não tive tempo... Na verdade, hoje eu preciso correr atrás do que de fato eu vim fazer aqui. Preciso ir ao banco ver uns extratos, correr atrás da documentação pro meu visto e ver os outros detalhes pra embarcar pro Reino Unido. O único ponto do Rio que vou visitar é o Galeão pra comprar as passagens...

_ Verdade... me esqueci que você está aqui só por tabela, que não veio pra conhecer de fato o Rio...

_ É, é o meio do meu caminho. Vou ter que voltar depois pra ver melhor essa cidade.

_ Você pensa em voltar? Vai voltar só pra conhecer o Rio?

_ Não sei o que será da minha vida. As próximas páginas estão completamente em branco. Eu não faço ideia do que acontecerá comigo nos próximos dias, nas próximas semanas. Não sei se vou conseguir todos os documentos, se vou conseguir o visto de trabalho, como vai ser todo esse processo..

_ Ah, você se preparou, juntou dinheiro, se informou...

_ É o que eu mais quero nos últimos três anos. Fugir desse país, ficar a milhares de quilômetros da minha família, dos meus parentes, do pessoal do Colégio, dos meus antigos amigos, de tudo que eu tenho de história aqui nesse lugar.

_ Por que tenta fugir de todo mundo? Essas pessoas vão sentir sua falta. Eu te conheci ontem e já estou aqui pensando que sacanagem conhecer alguém tão especial que já está de partida. Por que o destino prega essas peças na gente?

_ A grande diferença é que essas pessoas não me conhecem. Minha família não me conhece, nunca fui eu mesmo dentro de casa. Nunca tive coragem pra cantar as músicas que eu gosto por medo de ser julgado. Nunca cantei alto meus versos favoritos porque isso abriria interpretações sobre mim que não seriam saudáveis pra minha cabeça. Não assistia o que eu queria, não fazia os comentários que eu queria. Pros amigos do Colégio eu vivia uma história completamente frágil, solta e refém dos olhares. Eu não sei como, mas a coisa é tão pesada que fizeram acreditar que eu gostava do que não gostava, que eu era quem não era... e hoje eu tenho que te agradecer por me permitir me conectar comigo mesmo. Por que olhando pra você desde a primeira vez eu vi que o sentimento que eu tive foi inédito e que, antes, com meninas que eu conhecia, aquilo não era a mesma coisa.

_ O que eu teria que fazer pra você ficar? O que eu teria que dizer pra você adiar essa viagem pra Europa por uma semana, por alguns dias?

_ Não posso perder meu foco, Kaká. Eu vim aqui determinado, eu lutei por essa viagem nos últimos três anos...

_ Pra viver sua sexualidade longe dos olhos de quem te conhecia?

_ Pra viver a vida que eu sempre quis, que eu sempre sonhei!

_ E por que essa vida estaria na Europa e não aqui, Fred? Vamos! Deixa eu te levar pra Ipanema hoje, pra Urca, pro Corcovado, por Parque Lage...

_ Eu não posso, Kaká. Tenho que manter meu foco...

_ Vou te esperar aqui. Nós vamos sim aproveitar esse momento! Sei que você quer também, Fred. Vamos! Vamos comigo!

E eu fui. Andamos a tarde toda sob o calor de quase 50°. Senti o frescor da brisa e dos olhares de Kaká. Pela primeira vez eu sentia como era viver uma história com início, com um ponto de partida, com um marco que fazia sentido e que tinha potencial. Era a primeira vez que alguém se interessava por mim não por ver uma foto editada num aplicativo, uma frase de efeito na bio, um match. Era a primeira vez que um ponto de partida de alguma história romântica não era um like, um "oi, como vai, o que procura aqui". Era a primeira vez que eu não tinha que falar idade, bairro, o que fazia da vida. De modo inédito, era a primeira vez que o interesse surgiu ao vivo, com um olhar, com a proximidade, com a respiração. Era a primeira vez que eu não ficaria embaraçado ao pensar que foi um início forjado por um aplicativo de pessoas impacientes por ter alguém na hora que precisam. E lá estava eu, andando pela areia úmida, sentindo as ondas quebrando nos pés e ouvindo as histórias de um garoto que não deixava o silêncio habitar por um segundo sequer. Ele entoava músicas sem saber que eu as amava, falava de suas histórias de infância e me deixava aconchegado nos afetos.

Do alto do Corcovado, o azul intenso do mar do Rio de Janeiro quase me capturava, fazendo qualquer palavra sumir. Até Kaká, que via o Cristo de longe todo santo dia, estava imerso num clima de turista, sem querer deixar escapar qualquer detalhe, por menor que fosse. A primeira selfie surgiu um instante de despreparo. Ele estava como sempre lindo, com micro gotas de suor na testa e o cabelo úmido. Sem avisar, assim como fez em minha vida, chegou e tirou aquela selfie que tinha o azul como cenário perfeito. Meu dente ficou horrível, como de costume, e minha camisa estava completamente molhada de suor. O que aquele garoto viu em mim? 

* Seja como for - Banda do Mar


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