"Linha Verde"

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"Parecia realidade

Motivos do coração

E aí na esquina, felicidade

Passeia na multidão

Onde há meninos, há heróis

A esperança sabe

Como é gostoso passear

Depois da tempestade"*

Kaká passou os olhos sobre cada centímetro da casa, como um perito criminal numa cena de assassinato. Seus olhos percorreram com cuidado cada porta-retrato, pote de porcelana, prateleiras, a cristaleira com taças, copos, pratos e talheres, a estante de madeira com as xícaras, as contas vencidas, os vidrinhos de remédio. Acompanhava seus passos sem querer quebrar aquele momento de auto reconhecimento, de minúcias, de detalhes que não poderiam se perder. Na cozinha, mais lágrimas. Ele me contava que ali, naquela enorme bancada de pedra, sua avó amassava a farinha com ovos e leite para fazer bolos, biscoitos e roscas, preparava a massa caseira de macarrão, confeitava tortas de aniversário, temperava carnes e tudo era regado por causos da infância dela na década de cinquenta, sobre a criação dos filhos, sobre a época em que era professora, sobre seus amores, suas aventuras e sobre a chegada do único neto.

_ Era aqui que tudo acontecia... - dizia ele me mostrando a cozinha da casa - aqui ela preparava as massas mais maravilhosas da face da terra, os melhores doces, as melhores sobremesas. Nessa cozinha eu conheci minha avó de um modo que ninguém conhecia, eu acho.

À tarde começamos a acomodar nossas coisas no quarto de hóspedes que estava vazio. Não ousamos adentrar no quarto dela e retirar as coisas do lugar, pelo menos não naquele momento. O quarto dos fundos era amplo, espaçoso, tinha as paredes nos tons que Adélia Prado chamava de "alaranjado brilhante", como se estivesse "constantemente amanhecendo". Nunca gostei de cores assim, como laranja ou amarelo, mas aquele amanhecer nas paredes era simbólico demais para caber nos meus preconceitos com cores.

O guarda roupa de madeira maciça abrigou minhas pouquíssimas peças de roupa. Kaká também não havia trago muitas, então sobrou espaço pro violão, pro cavaquinho, pro teclado e para a flauta, além dos fios, microfones e milhares de itens que o ajudavam a compor seus shows. Sentei no colchão alto, revestido por uma colcha de crochê branco. Nem percebi que Kaká havia se movimentado para cozinha e permaneci ali, sentado naquela cama, olhando pra aquele guarda roupa, pras paredes alaranjadas e pensando os contornos que minha vida estava recebendo. Pensava que meu futuro numa quitinete em qualquer sobrado da Europa, num quarto apertado, rústico, engordurado ou em qualquer cubículo que meu salário de sobrevivência pudesse pagar estava dando espaço pro conforto de uma casa ao lado de um cara que compartilhava tanto comigo. Kaká, querendo ou não, se sentia culpado por me desviar dos meus sonhos, dos meus objetivos que me trouxeram até aqui, mas mal sabia que aquele desvio de rota me levou pro lugar onde eu mais queria estar.

Fui despertado dos sonhos e pensamentos divagantes com o cheirinho do cozido de legumes e do arroz com pedacinhos de carne que Kaká preparou pro nosso primeiro almoço. Tudo estava recheado de cuidado e eu via carinho em cada pedaço de legume cortado, em cada porção de arroz, em cada gole de suco gelado. Me assombrava com uma vida que vinha aos 20 e eu esperava ter apenas aos 40. Kaká foi certeiro ao me estapear com a verdade. Jamais me imaginava morando um homem aos 20, dividindo uma vida num mesmo teto. Semanas atrás aquilo era inimaginável, impraticável, impossível. No auge de minha insegurança, me via conseguindo realizar aquilo tudo numa maturidade distante, que esperava estar longe de chegar. A potência do que eu sentia por Kaká estava ali: nosso romance era imprevisível, nada estava sob o conforto de ser a mesma coisa todos os dias. Tudo que acontecia entre nós dois era marcado pelo movimento, pela surpresa, pelo surpreendente e aquilo mantinha nossa relação viva. A potência estava em habitar um sentimento que tinha tudo para se transformar, pra crescer.

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