"Culpa do amor"

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"A gente corre sem saber

Que o tempo pode até parar

Nem tudo que foge dos planos, dá errado

Na vida que há pra viver

Nas coisas que dá para ter

À margem de qualquer engano, namorados

É tudo arte do amor

Brigas de aluguel

É tudo culpa do amor

Que anda pregando suas peças no azul tão bonito do céu"*

O prazer de compor um cartão postal havia ficava ainda mais intenso. As ondas quebravam na orla de Copacabana, com o azul esverdeado intenso do mar, os morros em tons de cinza e verde e aquelas enormes listras onduladas pretas e brancas. Esse conjunto fazia daquilo um clássico cenário do Rio. E o menino do Rio também estava lá, causando o arrepio que versava a letra da música.Tudo estava paradoxal demais dentro de mim. Por segundos eu me policiava para não endeusar demais o garoto que havia me magnetizado, ao mesmo tempo em que eu estava reparando no ondulado dos cachos, pensando como aquele garoto, com aquela beleza toda, com a voz que me abraçava pudesse estar ali agora, na Orla de Copacabana, me ouvindo falar bobagem, me fazendo companhia.

O complexo de inferioridade vinha com a mesma força que as ondas arrebentavam na areia. O endeusamento causa essas coisas na gente, e, vendo como Kaká tinha uma beleza na voz, no corpo e na alma, me perguntava a todo tempo o que um garoto como ele estava fazendo com um garoto como eu?Para além das minhas paranoias, complexos e endeusamentos, o fato era que o sol estava pino em pleno meio dia, o mar estava agitado, a areia tomada pelas cores dos guarda-sóis e eu e Kaká estávamos sentados num quiosque bebendo Chopp e comendo pastel de camarão.

_  E quando eu vou te levar no Aeroporto, chorar e implorar pra você ficar, correr pedindo pro avião parar igual em cena de novela? – dizia ele ajeitando minhas sobrancelhas com a ponta dos dedos

_ E quando você vai me dizer o que viu em mim para estar aqui agora? Nós não temos nada a ver! Eu ocupo minha mente tentando entender... – e minha frase era interrompida com um selinho salgado demorado

Queimei de vergonha ao perceber que uma mesa com dois casais de idosos nos olhava com ar nada amistoso. Fiquei sério e na mesma hora Kaká percebeu que meu semblante mudou.

_ O que houve? Tem nojo de dar beijinho com a boca suja de comida? – ria sem graça, tentando decifrar minhas marcas de expressão

_ Fico sem graça de fazer essas coisas em público... – ia ele de novo me interrompendo com outro selinho

_ Isso? Um beijo de dois rapazes na beira da praia?

_ É que isso pra mim é meio estranho... meio dia, de dia com sol quente, sol a pino, luz do dia numa praia lotada, cheia de gente, inclusive velha, olhando como se estivéssemos fazendo algo errado...

_ Sou totalmente contra essa coisa de ficar beijando escondido, vivendo nossa vida afetiva apenas nos guetos, nas vielinhas escuras, nos cantinhos, na penumbra, na madrugada. Na minha cabeça somos que nem todo mundo e eu não restrinjo meus beijinhos a luz do dia... mas se isso te incomoda tanto, tô aqui pra quebrar essa coisa de não poder ser quem a gente é.

Mais uma vez sem palavras, sorri por vê-lo com tanto vigor. Kaká tinha uma força que eu não sei de onde vinha. Uma firmeza nas palavras, uma convicção nas atitudes. Sua fala nunca era vacilante e aquilo me empolgava, me encorajava e me fazia querer ficar perto dele, afinal eu me sentia protegido como nunca.

_ Vou te levar agora pra ver o visto e as passagens ou vamos dar um rolê numa sorveteria gostosa que tem ali perto do Leme?

A mãe, que ele tanto amava, o havia deixado para viver a vida do outro lado do continente, a avó partiu pra outra dimensão e agora eu também ensaiava uma partida. "Quem era eu pra me comparar a duas pessoas essenciais na vida dele?", pensava ao mesmo tempo que sentia a necessidade de não ser mais uma pessoa distante, que o havia deixado. Pensava nos anos juntando todo aquele dinheiro, organizando tudo para que meu grande sonho enfim se tornasse realidade. Minha vida, minha rotina, meu cotidiano, meus pensamentos e minhas metas nos últimos anos orbitaram na área cinza e escura do futuro em outro continente. Havia reprimido tantos prazeres e agora que eu estava ali, diante do meu futuro tão sonhado, ele havia ficado pequeno perto de um romance inédito e que prometia ser minha chance única. Eu tinha 24 horas para escolher qual sonho morreria.

*

Ajeitei minhas poucas roupas que trazia na mochila enquanto ouvia Kaká lá fora ensaiando o repertório para aquela noite. As roupas limpas já estavam acabando, afinal minha viagem pro Rio já estava quase no fim. O bairro das Laranjeiras entardecia num alaranjado tão vivo, mesclado num céu rosa abençoado pelo Redentor e eu duvidava que alguém estivesse reclamando do som que Kaká assoprava da marquise centenária. Ele cantava as letras da Marisa, da Vanessa, na Ana e do Jorge como se fossem dele, imprimindo toda a identidade. Era incrível como Kaká tinha um poder às vezes até colonizador, que invadia quem chegava perto sem pedir muita licença, porém eu não sabia, ainda, identificar se aquilo era proposital ou não. O que era nítido era a força com que ele atraía as pessoas e as encantava num curto espaço de tempo.

Saímos em direção ao metrô do Largo do Machado rindo naquele calor que derretia qualquer coisa em segundos e meu sorriso não era mais tão sincero. A dúvida me arrebatava, a angústia tomava conta do peito e todas as minhas certezas viraram pó. Eu sentia que a loucura estava ganhando da sensatez e que eu, com minhas próprias mãos, estava prestes a jogar meus sonhos e meu planejamento pela janela por conta de um menino que surgiu dias antes me oferecendo um mundo que eu sempre quis ter.

Acompanhando o cantor e seu violão pelos botecos da Cidade, eu estava na Tijuca pela primeira vez. Estava mais surpreso com o repertório diferente do que o lugar novo. Tudo era diferente do que eu escutei Kaká ensaiando. Os artistas ganharam outras roupagens quando ele soltava um "Não me deixe só, eu tenho medo do escuro, eu tenho medo do inseguro, dos fantasmas da minha voz", olhando diretamente nos meus olhos, com um olhar sacana e romântico ao mesmo tempo. Ora ou outra cantava a música que eu estava todos os dias no ônibus na solidão dos fones de ouvido, imaginando qual o ser poderia me proporcionar aquilo tudo, e que pessoa um dia preencheria os versos de "Se você quiser eu vou te dar um amor desses de cinema, não vai te faltar carinho, plano ou assunto ao longo do dia", "se você quiser eu largo tudo, vou pro mundo com você meu bem! Nessa nossa estrada só terá belas praias e cachoeiras". Mais do que aquela pessoa que preencheria minhas canções, Kaká fazia aquele repertório se tornar realidade pra mim. 

* Culpa do amor - Mallu Magalhães

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