"Navegador" - Parte I

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"Faça o que quiser, mas não me negue

Invente uma desculpa que se aceite

Pense o que quiser, mas não se engane

Eu não nasci pra ver o mundo desabar

Não preciso ouvir seus pensamentos

Tudo em volta diz que é o fim

Fale o que quiser, mas não me espere

Pois dessa vez não vou tentar te convencer de nada"*

A noite mágica bordada a várias mãos foi um portal de sensações e momentos que ficaram sob minha pele causando efeitos inapagáveis. Enquanto Kaká olhava pra cidade, pras luzes, pra Avenida já vazia, pras montanhas e pros prédios, Lia e Áurea me cercavam com um abraço quente. A música ainda fluía em nossos corpos mesmo após Áurea largar o violão e Lia e eu deixarmos o microfone. Lili se aproximou naquele aconchego e dizia como aquele momento foi intenso e bonito, trazendo seu aroma sempre de doçura, enquanto Bia, Luiz e Joaquim já nos mobilizava para a cerveja de comemoração. As gargantas estavam secas e tudo que se havia para chorar já havia sido gasto.

Kaká e eu descemos os incontáveis lances de escadas de mãos dadas, sentindo o suor que brotava entre nossas mãos. Não ligávamos. Bia vinha atrás contando como foi difícil dobrar o garoto marrento e teimoso que não parou de reclamar e investigar para onde estava sendo levado. Sabia que Kaká não se convenceria fácil, mas apostei no poder de manha de Bia.

Sentamos nas varandas clássicas que me abrigavam nas minhas melhores noites tomando cerveja e tecendo fofocas e mais fofocas com Áurea, Lia, Joaquim e Bia por tantas vezes. Era estranho notar como aquele lugar, onde eu passava quase todos os meus fins de tarde e início de noite conversando, bebendo e comendo agora tinha Kaká, vislumbrado como aquele Condomínio amontado de bares esquistos, gente diferente, conversa alta, barulho de gente e uma efervescência essencialmente dessa cidade. Foi ali, naquela mesma varanda e naquelas mesas que chorei com Joaquim e Lia diversas vezes sonhando com minha viagem para Europa.

Naquelas mesmas varandas eu desenhava meu destino, contando pra Bia ou pra Áurea quais contornos eu pensava em dar para minha vida. Ali nós cantamos de Caetano, Tiê e Livinho a Cláudia Leite enquanto ríamos incomodando o outro lado da cidade. Todo o roteiro traçado naquelas mesas foi rasgado quando surgiu Kaká, me pedindo para deixá-lo fazer parte da minha vida, sonhar e crescer comigo. Todos os meus sonhos e planejamentos viraram pó e tudo que parecia essencial para minha felicidade ficou secundário quando a figura de um amor entrou em cena.

As semanas seguiram num constante "reprocessando" e "recalculando rotas". Kaká topou ajudar Bia a organizar eventos num Armazém de shows e bebidas onde ela trabalhava, conseguindo uma grana fixa e estável para se manter em BH, enquanto eu ia ajudando na comunicação, nas divulgações, nas promoções e mídias das programações. Quando vimos, estávamos envolvidos nos mesmos projetos, ganhando nosso dinheiro lado a lado.

Com toda motivação de Kaká, encontramos um apartamento também no JK, alguns andares abaixo da República. Na hora do almoço sempre chegava uma mensagem sobre "almoçamos aí com vocês ou vocês vêm almoçar aqui?". Escolhemos nossa mesa de jantar, nosso sofá da sala, nossa cama, nossos edredons, talheres, pratos e copos. Nossa concordância em azul nos fez trabalhar uma casa inteira nesses tons e, quem chegasse, notava que os moradores deixaram suas vontades e virtudes na decoração ainda minguada daquele ambiente. Nosso pequeno quarto-sala-cozinha-banheiro era tudo de mais necessário que poderíamos ter. Nosso tapete era o mais confortável dos espaços, onde revelávamos nossas confidências, chorávamos um no colo do outro, fazíamos planos. Aos vinte já tínhamos uma rotina que esperava ter aos trinta. Parecia que eu era a personagem principal do meu filme favorito das tardes de infância.

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