Capítulo 38

587 28 24
                                    

"Foi há muito tempo, mas descobri que não é verdade o que dizem a respeito do passado, essa história de que podemos enterrá-lo. Porque, de um jeito ou de outro, ele sempre consegue escapar."

— O Caçador de Pipas.

"Você será lembrada."
Evanna Allgood ainda se recordava claramente do dia em que Angelina Parker disse aquilo a ela. Foi quando tudo mudou. Sua vida simples e comum em Cork, na Irlanda, passou a tomar outro rumo. Um que ela nem ao menos pensou que podia existir...
Quem diria que, naquela tarde chuvosa e escura, ao atender a porta, ganharia uma passagem só de ida para uma nova realidade. Diferente dos seus pais, ela aceitou bem as mudanças drásticas que sofreu. Aceitou suas habilidades... Não via como algo negativo, mas sim uma espécie de benção. Uma rara e boa.
De fato, era diferente. E gostava disso.
Evanna fora treinada sua vida inteira por Lorenzo Colasanti e Angelina Parker, nada menos que os dois melhores heróis da Geração da Vitória, os que faziam parte dos raros sobreviventes. Desde pequena cresceu os admirando, desejando ser como eles.
Agora, depois de tudo que tinha enfrentado ao longo dos anos, confiava em si mesma. Confiava em seu poder.
Sabia que estava preparada.
No entanto, não pôde deixar de ficar nervosa — mesmo sabendo que tinha capacidade para realizar o plano com maestria — não diante de sua primeira missão importante.
Desde que entrara na Organização Secreta, todos seus objetivos foram cumprir um papel singelo de espiã. Nada muito grande ou significativo. Desta vez seria diferente... Mas estava tudo bem. Daria conta do recado.
Ela era boa nisso: em se misturar com as pessoas, em se esconder nas sombras e só ser notada quando desejava.
Evanna era como Nikolina: podia ficar invisível.
Mas fazia mais que isso. Sua extensão era tão forte que ninguém nem ao menos notava sua presença, em todos os sentidos. Enquanto usava seu poder, era como se sumisse por completo. Fisicamente e mentalmente. O que era bom, pois Monish, por exemplo, não a notaria entrando com os outros heróis, mesmo podendo ler mentes.
Ela passava despercebida por sinais, armadilhas, pessoas, tudo.
Era como uma fumaça.
Era a arma secreta do grupo.
Calum estava ao seu lado e parecia igualmente, se não mais, nervoso. Não sabia o que esperar. Tinha um ódio profundo por Monish e tinha medo de botar todo plano a perder somente por causa de seu temperamento complexo. Michael, atrás de si, tinha o garantido mais cedo que não chegaria nesse ponto, pois ele não deixaria. Confiou no colega, sem outra escolha.
No entanto, no fundo, o moreno sabia que se o Senhor das Mentes mencionasse certo nome... Nada iria conter o ódio e a força dentro dele. O mataria, custe o que custasse — isso incluía sua própria vida.
Lorenzo estava sem expressão. Frio, indecifrável. Tinha esperado muito tempo por aquilo e não falharia agora. Sua única missão era capturar e matar Monish. Era por isso que estava ali. Resgatar Skye seria um bônus. Matá-lo... bom, era o objetivo.
Contudo, ninguém poderia negar que Luke, dentre todos, era de fato o mais inquieto.
Não só por talvez ver que poderia ser tarde demais para Skye, não só por estar entrando em um covil de monstros — e um que talvez jamais saísse...
Não.
Era porque tinha feito um acordo com o diabo há algum tempo. E sabia que ele não se esqueceria de cobrá-lo.
Não contou isso a ninguém, é claro. Só traria um sofrimento desnecessário ao grupo, além de mais preocupação. Já estava ferrado, em todos os sentidos. Não importava mais...
Aproveitando sua situação lamentosa, faria outro acordo. Iria propor uma troca a Monish: ele por Skye. Talvez, quem sabe, o homem aceitasse. O loiro era poderoso e, mais que isso, honrava sua palavra. Esperava que não chegasse tão longe, mas sabia que, se fosse a única escolha, não hesitaria. Faria qualquer coisa, inclusive dar a própria vida, por aqueles que amava.
Nikolina surgiu em sua mente, mas ele logo se esquivou do pensamento.
Não podia pensar nela... Não agora. Não ali.
Pois, se o fizesse, jamais teria coragem de propor o acordo.
— Já sabem o plano — Lorenzo interrompeu seus pensamentos sombrios, trazendo-o de volta a realidade.
Todos assentiram com a cabeça, concordando de uma forma silenciosa.
Mais cedo, Scott tinha feito um mapa do compartilhamento secreto que o grupo se escondia no meio da floresta. Desenhou onde Skye estava, além dos corredores minados, aqueles que tinham guardas posicionados ou escondidos. Havia até mesmo o escritório de Monish e sua suíte.
Então, a primeira parte tinha sido fácil.
Todos se separaram, cada um seguindo por um corredor, eliminando os guardas, as ameaças. Calum os esmagava sem sequer suar. Lorenzo, com sua adaga, fazia um trabalho rápido e eficiente, habilidoso como fora treinado para ser, apesar de sangrento. Michael os enfeitiçava com ilusões e Luke, aproveitando-se disso, os matava. Um por um foi derrubado.
A legião principal de Monish estava caída, por fim.
Os corredores antes limpos e extensos estavam agora vazios e gelados, banhados de sangue. Silenciosos.
Todos juntarem-se novamente, indo em direção ao galpão principal, onde Skye estava. Prosseguiam cautelosos, não confiantes. Sim, tinham realizado com sucesso a primeira parte do plano, mas... tinha sido fácil demais.
Algo estava estranho.
Quando chegaram em frente a porta, que abriu sozinha, lenta, rangendo de forma ameaçadora, perceberam que era a última chance de desistirem e escaparem.
Nenhum deles se moveu.
A escuridão os invadiu e os ladeou.
Seguraram as armas com mais força.
Lorenzo deu o sinal. A partir de agora, estavam em zona de guerra, de perigo. Ali, tudo valia. Qualquer passo em falso era motivo de disparar a arma, para qualquer um dos lados. Enquanto se espalhavam pela escuridão, pela sala, viam que a descrição de Scott sobre o ambiente era impecável. Havia ali tudo que ele disse que estaria.
Era difícil enxergar, mas com esforço conseguiam, graças à luz do corredor.
Tudo mudou, todavia, quando a porta se fechou em um baque silencioso, deixando-os em um breu total.
Evanna, por sorte, já estava no centro do salão, perto da cadeira onde Skye estaria amarrada, segundo Scott. Todavia, quando chegou lá, viu que não tinha mais ninguém. Estava vazia.
Luzes se acenderam.
Todos entreolharam-se, apontando a arma para o lado oposto, mas...
Estavam sozinhos.
Ao menos, foi o que pensaram.
Uma risada preencheu o local, baixa, impiedosa. Invadia cada canto da sala, impregnando-se em seus ouvidos, em suas mentes. Um vulto correu pelo cômodo, fazendo todos os heróis ficarem em alerta, tensos.
No entanto, quem quer que fosse, locomovia-se de forma sobrenatural. A risada aumentou, deixando todos tontos. Luke já invocava seus poderes, prestes a mandar a pessoa pelos ares, quando sentiu alguém os desligar.
Ao encarar os amigos, viu que não tinha sido o único a sentir a sensação. Michael franzia o cenho, encarando as mãos, assim como Calum. Não havia mais poderes. Agora, só tinham as armas de fogo e um plano que, se tivessem sorte, se sustentaria até o final.
— Ora, ora... Achei que jamais viriam.
O galpão era grande, cheios de prateleiras e artefatos. No meio havia uma cadeira, uma suja de sangue e vômito, que parecia ter mantido alguém como prisioneiro por dias. No entanto, agora só restava um vazio em resposta. Nenhum dos heróis se deixou pensar no que aquilo poderia significar.
Apesar da voz maliciosa e baixa os serpenteando, nenhuma pessoa sequer surgiu ali. Nenhuma sombra.
Mas sabiam que não estavam sozinhos.
— Lorenzo Colasanti... Quanto tempo, certo? Como anda Yumi?
A risada aumentou, virando uma gargalhada intensa e terrível. Fora uma provocação, uma baixa e desumana. Monish sabia a resposta de sua própria pergunta, pois fora ele mesmo quem a matou.
O italiano cerrou os punhos, tremendo. Não queria demonstrar qualquer reação que fosse, mas era impossível. Jamais poderia disfarçar suas emoções, não sobre a mulher que amava.
— Calum Hood... Meu menino de ouro. Tão forte, tão determinado. Seria um bom guerreiro ao meu lado, se não fosse por sua mente tão pequena e fraca. Ah, se você fosse mais como seu melhor amigo... Como era mesmo o nome dele...? Liam Woods, correto?
O moreno teve que fechar os olhos e suspirar fundo. A raiva corria por seu sangue. O dedo, que estava no gatilho do revólver que segurava, tremia. Todo seu corpo gritava para ele atirar. Fora o olhar de Michael que o impediu.
"Você prometeu voltar vivo para ela".
Sabia de quem ele falava.
Claire.
— Fico feliz que finalmente você tenha encontrado alguém para amar. Apesar de que isso lhe trará mais dor no futuro. Não aprendeu nada com os próprios erros, Calum Hood?
O garoto tentou erguer o escudo mental, como fora ensinado a fazer, mas Monish era mais forte. O moreno o sentia vasculhar sua mente, pedaço por pedaço. Conseguiu o jogar para fora, fechando o acesso, mas só fez isso porque o homem deixou. Se ele quisesse de fato, ainda estaria lá.
— Michael Clifford... A emoção e o coração do grupo. É uma honra recebê-lo aqui.
A voz do homem os cercava de forma invisível, mas intensa. Estava em vários cantos da sala, aumentando e abaixando o volume conforme serpenteava. Todos notaram, contudo, o quanto o tom ficou macio ao falar com o garoto. Havia respeito ali... Talvez até mesmo um pingo de afeto.
Lorenzo, sagaz, não perdeu a oportunidade de revidar.
— Não irá perguntar como anda a mãe dele? Sobre Johanna? Aquela à qual você matou? Aquela que você dizia amar?
Pronto. Ele não precisou falar mais nada.
As luzes explodiram, assim como vários artefatos. As armas, na mão de cada herói, começaram a derreter. O vento invadiu o galpão, assustando a todos. Alguns gritos puderam ser ouvidos, mesmo ao longe. E, então, com um estrondo ecoando, todos sentiram uma presença forte, gritante. Uma sensação horrível que infiltrava a pele de cada um. Doía. Era tanto poder que doía.
E souberam.
Monish estava presente.
Em carne e osso.
E ele estava furioso como nunca, com os olhos em brasa e o corpo tremendo.
Com um estalar de dedos, Lorenzo estava jogado no chão. Garras invisíveis surgiram em volta de seu pescoço, em sua mente. Com um piscar de olhos, podia matá-lo se quisesse. Podia fazer seu cérebro derreter. Ali e agora. Ninguém conseguiria impedi-lo. Ninguém.
— Jamais mencione o nome dela. Jamais sequer pense nela. Você a matou. Você foi quem a destruiu, não eu.
Lorenzo, mesmo sabendo do perigo em que se encontrava, conseguiu sorrir. Era bom saber que, mesmo indefeso, ainda tinha poder sobre Monish, mesmo que pouco. O homem, parecendo se dar conta disso, o soltou, recuando para longe. Ainda tremia de raiva.
O resto estava em silêncio.
Até Calum olhava para baixo, acovardado. Quando pensava em Monish, pensava em alguém cruel. Um homem poderoso com ideias insanas. No entanto, o que ele era de fato... Não se comparava a nada com que tinha imaginado. Era muito mais que isso. Muito pior.
Ele exalava poder, força. Era como se houvesse centenas de heróis dentro de si. Tinha tanta energia acumulada... Tudo que havia feito até agora tinha sido sem esforço. Qual seria o auge do Senhor das Mentes?
Michael, ao ouvir o nome da mãe, teve que fechar os olhos. Luke, ao seu lado, esticou a mão e a colocou no ombro do amigo, em consolo. Um movimento arriscado. Um que não passara despercebido.
— Luke Hemmings — Monish falou, em alto e bom som, como se saboreasse o nome. — Já faz um tempo, não?
A risada voltou, baixa, maliciosa... Impiedosa.
Então, ele se recordava.
Lorenzo franziu o cenho, assim como os outros, mas Luke sequer se moveu. Simplesmente ficou mudo, encarando o homem como se o desafiasse. Sabia que estava sendo testado. Todos ali estavam.
— O sofrimento dela pelo seu... — O vilão citou o acordo dos dois, sorrindo de orelha a orelha. — De fato, um bom garoto. Um bom amigo.
Luke se lembrava. Lembrava-se de cada maldito detalhe. De cada palavra. Havia feito o acordo no dia em que Claire se jogara do topo do penhasco. Tinha sido por tão pouco que conseguira salvá-la... Havia quase a perdido para sempre. Se tivesse hesitado por um segundo...
O fato é: mesmo que ele só a tivesse salvado da queda, Monish continuaria a atormentando em pensamentos, matando-a pouco a pouco. Aquele não teria sido o fim.
Por isso, não se arrependia, nem por um segundo, de ter oferecido a si mesmo em troca dela, de sua saúde mental. Faria isso de novo, se pudesse voltar no tempo.
— Mas você não anda sofrendo, certo, Luke? Não de verdade...
O loiro engoliu em seco, mantendo-o longe de sua mente, mas era inútil sem seu poder. Ele já estava lá dentro — e há muito tempo. O homem caminhou entre as lembranças, entre os pensamentos.
Nikolina.
A risada soou em sua mente, só para ele escutar. Gostara de saber de seu envolvimento com a russa. Mais uma forma de atingi-lo... Não que precisasse, já que fazia um bom trabalho sem a informação.
— Ela realmente o afeta, não é, Hemmings?
Treinado como era, continuou calado e impassível. Não daria esse gosto a Monish, mesmo com o homem em sua cebeça, sabendo o quanto, de fato, afetava-o.
— Imagino como deve ter se sentido ao saber que Nikolina está desaparecida...
Luke congelou. Os olhos azuis e claros, pela primeira vez, focaram-se nos de Monish. Havia diversão neles. O homem sabia que o loiro não tinha conhecimento da informação... Foi um golpe calculado e certeiro.
— Lorenzo não contou? — fingiu surpresa, balançando a cabeça, como se estivesse desapontado. — Cuidado com as pessoas em quem confia, Hemmings...
As mãos de Luke tremiam. Tinha que ser um blefe. Precisava ser... Mas algo dentro de si sentia a verdade nas palavras do homem. Teve a certeza quando encarou a culpa nos olhos do italiano. O ódio explodiu dentro dele.
Michael, já nervoso pela enrolação e pelas ameaças, interrompeu o silêncio. Não tinham tempo a perder. Não mais.
— Queremos a Skye. Onde ela está?
Os olhos do homem se encheram, mais uma vez, de emoção, mas sumiram de forma rápida. Tentou chegar mais perto, mas Calum, no chão, praticamente rosnou. Rindo, decidiu se manter afastado — por ora.
— Skye está viva. Isso basta, certo?
Evanna, enquanto isso, mantinha-se escondida. Todos, ao entrarem, sabiam do risco de terem os poderes anulados. Já havia acontecido uma vez, há muito tempo. Luke foi quem dera a dica. E por isso ela estava ali.
Eles não podiam tirar seus poderes.
Não quando não sabiam de sua existência.
Andou pelo galpão, atenta, procurando Skye enquanto os outros distraiam o vilão. Depois que achasse a menina, o que teria que fazer em seguida era matar Jack O'Connel. Segundo os palpites, ele é quem tinha o domínio de bloquear os poderes. Com o homem fora da jogada, voltariam a ter forças para lutar.
Essa era a única chance de fuga deles. Não podia falhar.
Foi então que a viu.
Dando um suspiro de alívio, correu até a menina que estava inconsciente. Ela tinha um pano cobrindo todo seu corpo. Teria entrado em desespero se não a escutasse murmurar baixo, mesmo que fossem palavras desconexas. Arrancou-o, sem pensar.
Ainda respirando, ainda viva.
Estava prestes a puxá-la para longe, para fora daquele covil de monstros, quando bolhas em sua mão nasceram de forma rápida e dolorida.
Veneno.
E então, das mãos, passaram para o braço. E de lá para todo o corpo.
Um grito saiu de sua boca enquanto tudo nela queimava. Parecia pegar fogo, essa era a sensação. As bolhas estavam vermelhas, irritadas. Sentia o seu sangue parar de circular. Seu coração falhou uma vez.
Duas vezes.
Três.
E, com um berro, uma última.
Evanna caiu sem vida no chão, de volta a sua forma visível, atraindo a atenção de todos os heróis. Lorenzo arregalou os olhos, botando a mão no peito. A arma secreta, a única salvação... Morta, estava morta.
O pânico começou a dominá-lo, além da tristeza devastadora. Tinha perdido mais que uma peça importante em uma missão. Seus olhos se encheram de lágrimas, mas ele não derrubou uma sequer. Não ali. Não agora.
Calum olhou para o nada, perdido, com o coração acelerado. Não cumpriria sua promessa feita a Claire. Não mais. Não tinha como...
Todos pareceram passar pela mesma situação, pelo mesmo processo da esperança se ruindo. Monish tinha todo o poder. Eles estavam indefesos e, agora, sem um plano. Não tinham mais nada. Nem os outros heróis lá fora e os agentes conseguiriam resgatá-los.
O silêncio preencheu toda a sala.
Nada se podia ouvir, exceto o coração disparado dos heróis. De cada um deles.
Monish os olhou, sombrio, um por um.
Não houve uma pessoa no cômodo que não entendeu a mensagem. Que não soube o que aconteceria.
Mortos.
Seriam todos mortos.

Heroes of TomorrowOnde histórias criam vida. Descubra agora