Prólogo

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Quando Melissa abriu os olhos, a primeira coisa que percebeu foi que engolia água. Água de gosto horrível, gosto de lama. Cuspiu, aos engasgos, e pensou que sufocaria com a dificuldade de respirar. Mas, na verdade, aquilo não incomodou muito.

A segunda coisa que percebeu foi o sentimento de culpa. Mas nisso não havia nenhuma novidade.

Ergueu-se com um pouco de dificuldade. Estava no asfalto, à noite, no meio de uma correnteza que varria a rua e debaixo de uma tempestade que castigava a cidade. Olhou desolada para o caderno escolar submerso na água suja. Lá se foram as anotações do ano letivo. Pior: lá se foram seus desenhos.

Se bem que... ela não se importava muito com qualquer uma dessas coisas, afinal. Já estava de recuperação em algumas matérias e seus poemas eram bem ruins – ao menos era assim que ela julgava.

Não, o caderno não faria a menor falta. Poderia se desmanchar na água, se assim ele quisesse.

Também não se importava mais com a chuva. Nem com a imagem de Alexandre lhe mostrando o dedo do meio enquanto lhe negava uma carona. "Burguezinho safado filha da puta", pensou.

Estranhamente, ela não se importava com nada. Bem, quase nada. Ainda se importava com aquele sentimento de culpa que lhe esmagava o peito. A única coisa da qual realmente queria se livrar insistia em se alojar ali dentro.

Levantou-se, por fim. A dor no peito passara. Sabia que deitar-se era a melhor solução quando sentia dor, só não imaginava que desmaiar era um recurso ao qual seu organismo poderia recorrer quando ela não estivesse disposta a deitar-se no meio da rua, tarde da noite, na chuva. Aparentemente aquele corpo inconveniente ainda tinha suas surpresas bizarras.

Torcia para que ninguém do colégio a tivesse visto desmaiada na sarjeta. Claro que não ajudariam. Seus colegas de classe teriam tirado fotos e gravado vídeos, e àquela altura já seria assunto nas redes sociais. Pelo menos constatou que suas roupas estavam intactas. Cinquenta mil casos de estupros por ano no país, e o dela seria no meio da rua, debaixo da chuva. Pelo menos não faria parte dos 51% das que foram estupradas antes de sequer chegar aos quatorze anos. Abençoadas sejam todas as estatísticas. Quando chegasse em casa...

De repente, sentiu essa enorme necessidade: chegar em casa. Uma urgência que lhe dizia "vá logo, corra, vá para casa"! Não pensava na mãe, nem no chuveiro, ou nas cobertas e chocolate quente... pensava no lar, a construção onde crescera e que estaria lá, esperando por ela. Sempre esteve. Chamando, atraindo, como a luz atrai os pirilampos.

Ajeitou na cabeça o capuz da capa de chuva transparente que vestia e começou a correr. Estava completamente perdida, o que pode ser pleonasmo, mas é assim que ela escreveria em seu diário mais tarde. Gostava de matar o tempo escrevendo redundâncias. Querido diário, tenho certeza absoluta de que estou certa, e a professora, errada.

Procurou o celular na bolsa para olhar no mapa onde estava, exatamente, mas não o encontrou. "Mas será o caralho? Fui roubada enquanto estava desmaiada?", pensou, sem ter certeza de que levara o aparelho para a escola. Não tinha certeza de mais nada, apenas que precisava chegar em casa.

Mesmo perdida, acelerou ainda mais ladeira abaixo, para lugar algum, com a impressão de que a correnteza a guiaria.

Lembrou-se então que havia pouco uma corrida como essa causara as dores no peito e o seu desmaio. Transformou a corrida em um passo acelerado. Não era sensato abusar da sorte duas vezes na mesma noite. A água da chuva escorria no rosto, incomodando a visão.

Encontrou um ponto de ônibus e estranhou uma pessoa em pé ao lado do poste pintado de amarelo. Essa não é uma visão normal quando parece que a cidade está nos dias de Noé, pensou Melissa. Então imaginou que poderia ser alguém que teve tanto azar quanto ela e, por instinto, solidarizou-se.

Morte, o Intervalo da VidaOnde histórias criam vida. Descubra agora