23 - Dívidas

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No domingo eu não fui à igreja. Se me arrependeria disso só o tempo diria, mas no domingo eu não queria ir e decidi fazer o que eu queria fazer e não o que queriam que eu fizesse!

Deixei minha camisa jogada em cima do criado mudo no chão, quando, de manhã, minha mãe entrou no quarto para me chamar, ela viu a roupa cheia de manchas de sangue. Eu ouvi ela entrando e simulei estar dormindo, sem camisa, peito esfolado. Então sem mais ela saiu. Em seguida meu pai deu partida no carro e os dois foram à missa me deixando ali.

No domingo eu não sai de casa, me olhei no espelho algumas vezes encarando as marcas novas que fiz e que cicatrizavam. Me senti um idiota.

Eu não vou mais chorar! Disse para mim mesmo. Não vou mais sentir raiva ou chorar! Ditava ordens que não seguiria, mas queria. Não vou mais fazer o que não quero!

A verdade é que eu gostaria de poder seguir essas ordens, mas não dava, as vezes era demais.

Aproveitei que minha mãe tinha saído e revirei o quarto dela atrás da minha maconha, mas não encontrei. Ela deve ter jogado fora. Ainda tentava pensar nas consequências daquilo, o que ela falou para meu pai, o que meu pai sabia? Qual era a extensão dos meus problemas?

David mandou mensagens depois do almoço, pediu desculpas, tinham ido do restaurante para casa dele e fizeram uma outra festa, ele acabou ficando acordado brincando com Kyle e os outros, então dormiu a manhã toda. Eu não respondi, estava apático à situação toda. Andava perambulando pela casa, sem focar minha visão ou esforçar meu cérebro em tarefa alguma.

No fim do dia eu não fui jantar, minha mãe me chamou, mas só respondi com um cortês "já vou", e nunca realmente fui. Esperei que fossem dormir para que eu fosse comer. Estava sim evitando os dois e não, não me incomodava com isso. Meu pai e minha mãe iriam querer discutir mais, mas eu não suportaria mais discussões sem explodir de novo e temia explodir. Quando cheguei na cozinha um papel preso na geladeira dizia "amanhã te levo à escola", a letra era do meu pai. Eu esquentei o arroz no micro-ondas e fritei um bife, jantei e fui dormir.

Provavelmente um dos piores domingos do ano.

No outro dia acordei cedo e me arrumei sem pressa alguma, banho, fiz a barba com todo cuidado para não tirar de onde não devia, assim desenhei a costeleta toda, mas tirei o bigode por completo. Coloquei as coisas da aula na mochila e fui tomar meu café, ainda sentia os olhos ardendo como se tivesse dormido pouco ou como se fosse a morfina... ou melhor, a ausência dela e a necessidade de mais.

O papel que meu pai havia deixado na geladeira ainda estava lá. Eu não gostava de pegar ônibus, mas não queria que ele me desse mais caronas.

Enquanto comia os biscoitos de maisena com margarina, eu pensava no que tinha acontecido no final de semana e nas implicações daquilo. Eu realmente não sabia se minha mãe teria falado ou não ao meu pai sobre a maconha, mas provavelmente teria falado do meu ataque!

Quando terminei de comer, bati o pano na pia para jogar os farelos fora e guardei a margarina na geladeira. Então meu pai chegou vindo da sala, ele usava uma calça daquela de pai mesmo (que você não sabe de onde vem, seu pai simplesmente tem uma, e o pai dos seus amigos tem outras iguais ou semelhantes de procedência igualmente desconhecida) e uma camiseta branca da igreja quando fizemos a peregrinação à basílica de Nossa Senhora de Aparecida.

— Vai querer que eu te de carona? — Essa voz... ele disse como se fosse apenas mais uma manhã qualquer, no entanto podia-se notar no fim de cada palavra aquele tom de quem quer debater, mas de forma casual. Chegar no assunto como se fosse o inocente. Me acha idiota, pai?

Ele perguntou enquanto eu fechava a porta da geladeira. Olhei para meu pai que andou ao redor da mesa se apoiando nas costas da cadeira.

— Acho que não precisa, obrigado. — Respondi indo pegar a mochila para sair.

Primavera de RulimOnde histórias criam vida. Descubra agora